Por Joaquim Leitão Júnior[i]e Paulo ReynerCamargoMousinho[ii]
Subtítulo: A Organização Criminosa e o fato de o agente faccionado desta que continua a integrar a mesma facção, mesmo após a deflagração de operação policial para desmantelar esta (com prisões cautelares) e mesmo após o recebimento de denúncia pelo crime de organização criminosa (anterior)
O crime de organização criminosa ao longo da história penal brasileira já passou por diversas discussões, basta que nos lembremos do próprio conceito de organização criminosa, alvo de enormes contendas no meio jurídico, pois até o advento da Lei nº 12.694/12(art. 2º) não tínhamos esse conceito legal, sendo extraído por um esforço hermenêutico da Convenção de Palermo (art. 2º, “a”) e então utilizado por penalistas.
A doutrina, com destaque para o eminente doutrinador LUIZ FLÁVIO GOMES[iii], já salientava a inconstitucionalidade dessa exegese até que o STF, seguindo orientação da doutrina acima, encerrou essa discussão sob o argumento que a “Convenção de Palermo não se qualifica, constitucionalmente, como fonte formal direta legitimadora da regulação normativa concernente à tipificação de crimes e à cominação de sanções penais” (Habeas Corpus 96.007/SPe Ext 1520 / DF).
Já sob a égide da Lei n. 12.850/13, renovou-se o conceito de organização criminosa e diversos outros aspectos se mostraram profícuos à discussão e atenção detida por parte dos juristas, citando, apenas a título de exemplo, a colaboração premiada, ponto fulcral de muitas interpretações e manifestações da doutrina e da Corte Suprema.
Pois bem, um tema de importância ímpar, que estranhamente não tem contado com a mesma dedicação da doutrina, mas certamente será objeto de ainda muitas discussões, é o marco interruptivo para que se possa configurar um novo crime de organização criminosa.
Como se sabe, o § 1º do art. 1º da Lei 12.830/13 conceitua organização criminosa, conceito legal que a partir de então deve ser usado como complemento homogêneo homovitelino da norma penal em branco contida no art. 2º da mesma lei, ao tipificar o crime de promover, constituir, financiar ou integrar“organização criminosa”.
Outrossim, no artigo pretérito ficou pendente no ar uma resposta, registrando que somente em outra oportunidade é que se enfrentaria: se realmente for viável comprovar que o agente faccionado continua a integrar a mesma organização criminosa – e que em momento algum se desintegrou desta –, onde mesmo depois de ser alvo da operação ou investigações não houve desmantelamento daquela, e por consequência, a permanência daquele não teria cessada. Como operacionalizar isto juridicamente?
Pois bem! É chegada a hora de refletir sobre o assunto.
Antes de aprofundarmos na celeuma, algumas considerações são necessárias. Vejamos.
Dificilmente, o preso faccionado na realidade brasileira rompe o contato com o mundo exterior, o que dificulta o desmantelamento das organizações criminosas que continuam a agir, inclusive muitas das vezes com ordens partindo de dentro dos presídios pelo agente preso faccionado e arregimentando ações delitivas impactantes no seio social (incêndio de ônibus; ataques a prédios institucionais; execuções etc). Logo, poderia ser o caso de não se ter o rompimento, desligamento, desintegração de direito ou faticamente do agente preso faccionado para com a organização criminosa, e vice-versa, embora faticamente e/ou de direito, o preso estará sem contato com os demais membros, caso não consiga manter os vínculos de dentro do Sistema Prisional com a organização.
Segundo ao que se sabe, o tema nessa direção nunca foi explorado e não pode ser ignorado nesses aspectos importantes em que a criminalidade organizada se expande.
Num mundo ideal em que celular e visitas não conseguem fazer interlocução do agente faccionado com o mundo fora da Cadeia e do Sistema Prisional, seria intuitivo dizer que o seu laço de associação foi rompido/desligado/desintegrado de direito/faticamente/virtualmente/propriamente dito para com a organização criminosa com a cessação de sua conduta permanente.
Entretanto, não é isso que ocorre em regra no Brasil e mesmo depois de preso ou do surgimento de uma investigação em outro contexto, aparecem condutas relevantes do agente membro de facção criminosa, indicando ter este renovado sua integração ou até mesmo ter permanecido na organização mesmo depois de preso ou investigado em momentos distintos.
Tecidas estas considerações, avancemos nas análises.
Como proceder no caso em que uma existente Organização Criminosa e seu agente faccionado desta é alvo de operação policial (com prisão cautelar) e ainda continua a integrar a mesma facção – e que em momento algum se desintegrou desta nem mesmo após a deflagração de operação policial?
Pior ainda: como enfrentar o caso em que uma existente Organização Criminosa e seu agente faccionado desta é alvo de operação policial, e nem mesmo após o recebimento de denúncia pelo crime de organização criminosa anterior em contexto fático diverso rompe/desintegra/desliga da facção?
Para ilustrarmos as situações que podem decorrer a depender do tipo de entendimento, imaginemos a seguinte circunstância hipotética: FULANO DE TAL é membro de determinada organização criminosa que foi identificada pela Polícia Judiciária, inclusive com farto conjunto probatório que não deixa dúvida da existência da facção (materialidade), nem da autoria de seus membros. Após ser indiciado, juntamente com seus comparsas pelo tipo descrito no art. 2º, da Lei 12.830/13, FULANO DE TAL continua a integrar a mesma organização.
Indaga-se, poderia ser indiciado novamente pelo mesmo tipo penal?
Evoluindo com nosso exemplo, imaginemos que FULANO DE TAL foi preso preventivamente e está aguardando julgamento. Teria a prisão preventiva o condão de impedir o cometimento de novos delitos e, consequentemente, a reiteração delitiva?
Indo um pouco mais além, se FULANO DE TAL já estava recluso e cumprindo pena pelo delito de organização criminosa, o que, infelizmente, não é incomum entre integrantes faccionados, poderia ser novamente processado caso continuasse a integrar o mesmo grupo criminoso? Nesse caso, poderia ser alegados concurso material de crimes, continuidade delitiva, ou haveria bis in idem?
Como se nota, para além de ser uma questão meramente teórica e acadêmica, a implicação prática da interpretação que se der a essa questão é enorme, pois se trata da configuração de um novo crime, sendo possível extrair a possibilidade de concurso de crimes, seja material ou mesmo em continuidade delitiva.
Neste ponto, cumpre salientar que o tipo penal previsto no art. 2º, da Lei 12.850/13 é considerado permanente[1], possibilitando, inclusive, a prisão em flagrante de seus membros, consoante já se manifestou o STF – Caso Delcídio do Amaral[iv].
Nas palavras do insigne doutrinador GUILHERME NUCCI, crime permanente é aquele cujo momento consumativo se prolonga no tempo por vontade do agente, ou seja, se trata de um único delito, mas que há possibilidade de extensão temporal por suas próprias características.
É o que o ocorre, por exemplo, no crime de sequestro, ocultação de cadáver e, ainda, com o crime de organização criminosa. Nesse caso, considera-se que o crime está ocorrendo enquanto não cessar a permanência, inclusive sendo esse o marco interruptivo para o início da contagem do prazo prescricional (art. 111, III, do CP).
Esse também é o entendimento dos renomados autores ROGÉRIO SANCHES CUNHA e RONALDO BATISTA PINTO[v]que consideram que o delito do art. 2º, caput, da Lei nº 12.850/2013 permanente. Confira:
“(…) Infração permanente, a sua consumação se protrai enquanto não cessada a permanência. Isso significa que o agente pode ser preso em flagrante delito enquanto não desfeita (ou abandonar) a associação (art. 303 do CPP)”.
A grande celeuma, acredita-se, seja determinar o momento exato em que a permanência foi cessada no delito de organização criminosa.
Na lavagem de bens, direitos e valores, na modalidade “ocultar”, também crime permanente, o crime protrai-se sua execução até que os objetos materiais do branqueamento se tronem conhecidos (Ação Penal 863/SP – STF).
No delito de sequestro, a permanência só cessa quando a vítima não se encontra mais em poder do sequestrador.
No tráfico de drogas na modalidade armazenar ou ter em depósito, enquanto a droga estiver sendo armazenada ou depositada pelo agente.
Mas em relação ao crime de organização criminosa, qual seria o marco interruptivo? A imposição da prisão flagrancial? A prisão preventiva ou temporária? O início do cumprimento da pena? O oferecimento da denúncia ou o recebimento dela? Várias são as possibilidades.
O início do cumprimento da pena é momento pós-processual, que pressupõe sentença penal condenatória com manifestação, no mínimo, em segunda instância, não sendo, portanto, momento ideal para o marco interruptivo da cessação da permanência, vez que o delito já deve ter sido considerado configurado e cessado para haver a condenação.
Bem, pode-se buscar fazer um paralelo bastante interessante com o antigo crime de Quadrilha ou Bando, substituído pelo delito de Associação Criminosa, eis que se trata de situação bastante semelhante[vi].
No antigo delito em comento, os Tribunais Superiores já se manifestaram diversas vezes que a permanência cessava com a denúncia, inclusive, com a possibilidade da configuração de um novo delito e, consequentemente, um novo processo sem que houvesse bis in idem. Vejamos os excertos dos julgados mais importantes sobre o tema:
Processo
HC 78821 RJ
Orgão Julgador
Primeira Turma
Partes
JOSÉ PETRUS, JOÃO COSTA RIBEIRO FILHO, SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Publicação
DJ 17-03-2000 PP-00002 EMENT VOL-01983-02 PP-00304
Julgamento
4 de Maio de 1999
Relator
OCTAVIO GALLOTTI
Correto o acórdão impugnado, ao ter como cessada, com a denúncia, a permanência do delito de quadrilha, para o efeito de admitir (sem que se incorra, por isso, em bis in idem) a legitimidade, em tese, de nova acusação pela prática de crime daquele mesmo tipo.
Processo
RSE 200151070008737 RJ 2001.51.07.000873-7
Orgão Julgador
PRIMEIRA TURMA ESPECIALIZADA
Publicação
DJU – Data::24/01/2008 – Página::220
Julgamento
12 de Dezembro de 2007
Relator
Desembargadora Federal MARIA HELENA CISNE
PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. REJEIÇÃO DA DENÚNCIAESTELIONATO CONTRA O INSS. CRIME PERMANENTE. CONTAGEM DA PRESCRIÇÃO A PARTIR DO DIA EM QUE CESSOU A PERMANÊNCIA.PRESCRIÇÃO PELA PENA IDEAL OU EM PERSPECTIVA .IMPOSSIBILIDADE.
– O delito de estelionato praticado em face da Previdência Social, mediante a concessão fraudulenta de benefício previdenciário, com recebimento de prestações periódicas, não constitui delito instantâneo com resultados permanentes, mas sim crime permanente, pois seu momento consumativo prolonga-se no tempo em razão da persistência da vontade do agente em manter o INSS em erro, agindo de forma a renovar seguidamente a fraude que determina o pagamento do benefício indevido em cada mês.Precedentes no STJ.