Por Eduardo Luiz Santos Cabette
O denominado “Pacote Anticrime” (Lei 13.964/19) havia criado uma nova causa de aumento de pena (triplicando a pena) para os Crimes Contra a Honra perpetrados por meio de redes sociais da internet. Entretanto, tal dispositivo foi objeto de veto presidencial nos seguintes termos:
A propositura legislativa, ao promover o incremento da pena no triplo quando o crime for cometido ou divulgado em quaisquer modalidades das redes sociais da rede mundial de computadores, viola o princípio da proporcionalidade entre o tipo penal descrito e a pena cominada, notadamente se considerarmos a existência da legislação atual que já tutela suficientemente os interesses protegidos pelo Projeto, ao permitir o agravamento da pena em um terço na hipótese de qualquer dos crimes contra a honra ser cometido por meio que facilite a sua divulgação. Ademais a substituição da lavratura de termo circunstanciado nesses crimes, em razão da pena máxima ser superior a dois anos, pela necessária abertura de inquérito policial, ensejaria, por conseguinte, superlotação das delegacias, e, com isso, redução do tempo de trabalho e da força de trabalho para se dedicar ao combate de crimes graves, tais como homicídio e latrocínio.
Inobstante os judiciosos fundamentos do veto presidencial, o legislativo não se deu por satisfeito e, mesmo com demora ilegal e injustificável, porque violadora dos prazos do devido Processo Legislativo, para deliberação do Congresso sobre eventuais derrubadas de veto presidenciais (inteligência dos artigos 57, § 2º., IV c/c artigo 66, §§ 4º. e 6º., CF), acabou ressuscitando o dispositivo vetado, mais de 16 (dezesseis) meses após a entrada em vigor da Lei 13.964/19, com prejuízo não somente à legalidade, mas também à mais mínima segurança jurídica que se possa desejar.
Em consonância com esse entendimento sobre a inoportuna criação dessa causa especial de aumento de pena por violação da proporcionalidade, toma-se a liberdade de transcrever a manifestação de Lima:
Se, de um lado, a novel majorante busca dissuadir a utilização das redes sociais para a prática de crimes contra a honra, algo que infelizmente se tornou uma rotina nos últimos anos, sendo praticamente impossível, nos dias de hoje, imaginarmos um delito dessa natureza que não seja praticado por intermédio dessas plataformas digitais que permitem o compartilhamento de mensagens, arquivos e informações de qualquer natureza, do outro, ao determinar a aplicação do triplo da pena para tais delitos, vem de encontro ao princípio da proporcionalidade como proibição de excesso e como proibição de proteção insuficiente, que, em matéria penal, deve levar em conta a importância do bem jurídico tutelado, o grau de afetação do bem jurídico, o elemento subjetivo e a forma de participação do agente no delito.
Para fins de ilustração, tomemos como exemplo um crime de calúnia: se cometido de forma simples (CP, art. 138, caput), o agente estará sujeito a uma pena de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. Tendo em conta que a pena máxima não é superior a 2 (dois) anos, trata-se de infração de menor potencial ofensivo, a ser objeto de apuração por meio de termo circunstanciado, e não de inquérito policial. A competência, portanto, será dos Juizados Especiais Criminais, aplicando-se o procedimento comum sumaríssimo. Como se admite a transação penal, bem como os demais institutos despenalizadores previstos na Lei n. 9.099/95, não será possível a celebração de acordo de não persecução penal, ex vi do art. 28, § 2º., I, do CPP, incluído pela Lei n. 13.964/19. Por outro lado, se esta mesma calúnia for cometida pelo facebook – suponha-se que o agente faça um simples post na referida rede social imputando falsamente a alguém fato definido como crime -, observado o princípio da irretroatividade da lex gravior, o agente deverá responder pelo crime do art. 138, c/c 141, § 2º., ambos do CP, aplicando-se a pena triplicada, leia-se, detenção de 18 (dezoito) meses a 6 (seis) anos, o que significa dizer: a) não se trata de infração de menor potencial ofensivo; b) o instrumento investigatório a ser utilizado será um inquérito policial; c) a competência será do Juízo Comum, e não dos Juizados Especiais Criminais; d) não será cabível a transação penal tampouco a suspensão condicional do processo, admitindo-se, todavia, o acordo de não persecução penal; e) se caso o indivíduo for preso em flagrante, o Delegado de Polícia sequer poderá arbitrar fiança, eis que, para tanto, a pena máxima cominada ao delito não pode ser superior a 4 (quatro) anos (CPP, art. 322). De mais a mais, constata-se que a pena cominada a essa calúnia cometida pelas redes sociais corresponde a mais que o dobro da pena dos crimes de homicídio culposo ou aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento (CP, arts. 121, § 3º., e 124, respectivamente) – detenção, de 1 a 3 anos –, é quase idêntica àquela prevista para o crime de infanticídio (CP, art. 123) – detenção, de 2 a 6 anos -, sem contar que excede em seis vezes aquela prevista para o crime de lesão corporal leve (CP, art. 129, caput) – detenção, de 3 meses a 1 ano -, situação que gera gritante desproporcionalidade no sistema penal. [i]
O quadro desenhado pelo autor supra já é bastante tenebroso em relação à proporcionalidade, mas acrescente-se que a pena máxima de 6 anos é igual à pena mínima para um crime de Homicídio Doloso Simples (artigo 121, “caput”, CP), embora se distinga por ser de detenção e não reclusão! Também é incrível o fato de que pena supera aquelas previstas para os crimes de abuso de autoridade que, em regra, não ultrapassam 4 anos (vide Lei 13.869/19). Apenas para arrematar, frise-se que tem pena maior do que o crime de omissão perante a tortura (artigo 1º., § 2º., da Lei 9.455/97 – detenção, de 1 a 4 anos)!
A obstinação do legislador em derrubar um veto de todo razoável, somente deve ter um destino, acaso se pretenda dar alguma validade ao Princípio da Proporcionalidade e alguma coerência ao nosso sistema penal: a declaração da inconstitucionalidade desse nefasto dispositivo. Sua invalidação não gerará qualquer prejuízo a um justo incremento punitivo dos crimes contra a honra perpetrados por meio das redes sociais, sendo plenamente aplicável ao caso o aumento já previsto no artigo 141, III, CP, da ordem de um terço, o qual, aliás, já é normalmente reconhecido em casos que tais, pois não se discute tratar-se de meio que facilita a divulgação da ofensa e que enseja seu cometimento em face de várias pessoas. [ii]
Contudo, não é absolutamente seguro que tal reconhecimento ocorra, especialmente em face das mais aberrantes variações jurisprudenciais que se vem presenciando em nossos tribunais, inclusive nos superiores. Enfim, até que e se algum dia se reconheça a inconstitucionalidade dessa teratologia desproporcional, “legem habemus”, e é necessário delinear os contornos de sua eventual aplicação.
Abstraindo, portanto a patente inconstitucionalidade do dispositivo pode-se afirmar que sua aplicação não pode ser dotada de retroatividade, eis que configura “novatio legis in pejus”. Somente terá aplicação possível para os casos de crimes contra a honra em redes sociais cometidos a partir da derrubada do veto, que se deu em data de 29.04.2021. Para os casos ocorridos anteriormente, haverá sim aumento de pena, mas da ordem de um terço somente, de acordo com o disposto no artigo 141, III, CP.
O incremento de pena do triplo é aplicável a todas as modalidades de crimes contra a honra, simples ou qualificadas, nos termos do disposto no artigo 141, “caput”, CP, que estabelece que os aumentos se refiram a todos os crimes previstos no “Capítulo”. Por exemplo, pode ser aplicado à Injúria – Preconceito, prevista no artigo 140, § 3º., CP, já com pena maior, o que nos brindará com uma ainda mais visível desproporção, pois haverá um crime contra a honra com pena de reclusão, de 3 (três) a 9 (nove) anos, pena esta maior do que aquela cominada para o crime de tortura simples (reclusão, de 2 a 8 anos – artigo 1º., da Lei 9.455/97)! Ainda que se alegue, como já foi reconhecido em decisões do STJ e do STF, que se trata a Injúria – Preconceito de uma modalidade de “Crime de Racismo”, [iii] então este seria o crime de racismo com pena mais gravosa existente, vez que a Lei 7.716/89, prevê para suas figuras crimes com penas geralmente variando entre reclusão, de 1 a 3 anos e reclusão, de 2 a 5 anos! Uma mera injúria, ainda que preconceituosa, não se pode nem sequer equiparar a condutas de extrema gravidade previstas na Lei de Racismo, quanto mais ter pena maior!
Em havendo concomitância da nova causa de aumento com outras já previstas no corpo do artigo 141, CP poderá haver aplicação conjunta ou, como permite o disposto no artigo 68, Parágrafo Único, CP, optar-se pela aplicação da causa de aumento maior, ou seja, a do artigo 141, § 2º., CP (triplo), descartando as demais. Seria o caso, por exemplo, de um crime contra a honra ser cometido contra o Presidente da República (artigo 141, I, CP) ou mediante paga ou promessa de recompensa (artigo 141, § 1º., CP) e ainda por meio de redes sociais.
Note-se que não somente o cometimento do crime diretamente pelas redes sociais enseja o incremento punitivo. Pode também ocorrer a conduta fora das redes, mas ser por meio delas divulgada. Por exemplo, em uma discussão face a face uma pessoa injuria a outra. Essa discussão é gravada em áudio e vídeo com um celular, como costuma ocorrer hoje em dia. Posteriormente, o ofensor posta o citado vídeo nas redes sociais, divulgando a injúria perpetrada. O que era até então um crime de injúria simples, adquire o “status’ de injúria majorada da ordem do triplo.
Porém, a respeito da divulgação, é preciso cautela. O aumento somente se justifica se o próprio autor do crime ou alguém a seu mando faz a divulgação nas redes sociais. Quanto um crime contra a honra é cometido fora das redes sociais, captado por alguém (um terceiro que não o autor do crime contra a honra), sendo por este terceiro divulgado nas redes, sem conhecimento do ofensor original, não será possível atribuir a este último a majorante, sob pena de incidência em responsabilidade penal objetiva (inteligência do artigo 19, CP). Já o divulgador ou propalador, responde pela calúnia, por exemplo, com pena triplicada (inteligência do artigo 138, § 1º. c/c artigo 141, § 2º., CP). Sendo o caso de difamação ou injúria, não existe a previsão legal dos institutos da propalação ou divulgação, mas se, mediante a divulgação nas redes, o agente comete, de forma independente, nova difamação ou injúria, utilizando-se desse material e meio de disseminação, responderá certamente com a pena respectiva triplicada.
Em havendo um mandante e um executor do crime contra a honra, sendo a decisão de agir por meio das redes sociais exclusiva do executor, a causa de aumento também não poderá ser aplicada ao mandante, seja por configurar-se responsabilidade penal objetiva, seja porque pretendia o mandante participar de crime menos grave (inteligência dos artigos 19 e 29, § 2º., CP). Mas, se o mandante determina o modo de execução do crime contra a honra, elegendo “sponte própria” o meio cibernético, o aumento será aplicado tanto a ele como ao executor, não havendo os motivos supra mencionados para o afastamento da majorante. [iv]
Cabe ainda observar que não haverá majorante toda vez que sejam utilizados meios informáticos para a prática ou divulgação do crime contra a honra, mas tão somente quando esses meios informáticos se constituírem propriamente de “redes sociais da rede mundial de computadores” (“internet”). Acaso o crime seja perpetrado por meios informáticos ou cibernéticos que não sejam redes sociais, então poderá ter cabimento a majorante prevista no artigo 141, III, CP (“na presença de várias pessoas ou por meio que facilite a divulgação da calúnia, da difamação ou da injúria”), mas o aumento então será de apenas um terço (inteligência do artigo 141, “caput”, CP). Portanto, se o infrator se utiliza de email para distribuir mensagens desonrosas, de folhetos impressos com uso de computador e impressora, de mensagens telefônicas fora das redes sociais etc., não resta configurada a majorante do artigo 141, § 2º., CP. Pretender sua aplicação devido ao uso de meios informáticos, celulares etc., seria praticar vedada analogia “in mallam partem”. A lei se refere específica e estritamente a “redes sociais” da “internet” e não a qualquer meio informático, telemático, telefônico ou cibernético.
Ressalte-se que
redes sociais são estruturas formadas dentro ou fora da internet, por pessoas e organizações que se conectam a partir de interesses ou valores comuns. Muitos confundem com mídias sociais, porém as mídias são apenas mais uma forma de criar redes sociais, inclusive na internet. [v]
Assim sendo, o aumento de pena não será aplicável quando se tratarem de redes sociais fora da internet. A legislação é expressa ao referir-se a “redes sociais da rede mundial de computadores”. Então, se alguém se vale de uma reunião de Associação de Bairro, Clube de Leitura, Grêmio Estudantil ou congêneres para praticar crimes contra a honra, o aumento de pena só pode ser aquele do artigo 141, III, CP, da ordem de apenas um terço e jamais o do artigo 141, § 2º., CP, da ordem do triplo.
O incremento punitivo que triplica a pena ocorrerá quando o agente utilizar redes sociais da “internet” como meio para a prática criminosa. Serão exemplos: Facebook, Instagram, Twitter, Telegram, GETTR, Google+, Whatsapp, Youtube, LinkedIn, Pinterest, Tik Tok, Skype, Snapchat entre outras. [1]
Em conclusão, resta a esperança de que essa nova inconstitucionalidade que veio à tona devido à obstinação do Poder Legislativo, seja corrigida pelo devido controle do judiciário, mediante a provocação dos atores processuais, de forma a não ocasionar maiores desequilíbrios do que os já existentes em nosso combalido ordenamento jurídico – penal.
Eduardo Luiz Santos Cabette – Delegado de Polícia aposentado, Mestre em Direito Social, Parecerista e Consultor Jurídico, Pós – graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia, Medicina Legal e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.
REFERÊNCIAS
BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Para o STJ injúria é crime de racismo. Será? Disponível em https://eduardocabette.jusbrasil.com.br/artigos/383442042/para-o-stj-injuria-e-crime-de-racismo-sera , acesso em 07.07.2021.
CUNHA, Adenauer. STF equipara injúria racial a racismo e crime passa a ser imprescritível; no Tocantins movimento negro comemora decisão inédita. https://conexaoto.com.br/2018/06/07/stf-equipara-injuria-racial-a-racismo-e-crime-passa-a-ser-imprescritivel-no-tocantins-movimento-negro-comemora-decisao-inedita , acesso em 07.07.2021.
LIMA, Renato Brasileiro de. Rejeição de Vetos ao Pacote Antricrime. Salvador: Juspodivm, 2021.
QUAIS são as principais redes sociais do Brasil? Disponível em https://www.mlabs.com.br/blog/diferencas-entre-as-principais-redes-sociais/ , acesso em 07.07.2021.
REDES Sociais. Disponível em https://resultadosdigitais.com.br/especiais/tudo-sobre-redes-sociais/# , acesso em 07.07.2021.
ROMANO, Rogério Tadeu. A Injúria Racial é Crime Imprescritível. Disponível em https://jus.com.br/artigos/66929/a-injuria-racial-e-crime-imprescritivel , acesso em 07.07.2021.
[1] QUAIS são as principais redes sociais do Brasil? Disponível em https://www.mlabs.com.br/blog/diferencas-entre-as-principais-redes-sociais/ , acesso em 07.07.2021.
[i] LIMA, Renato Brasileiro de. Rejeição de Vetos ao Pacote Antricrime. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 10 – 11.
[ii] Neste sentido: LIMA, Renato Brasileiro de, Op. Cit., p. 11 – 12.
[iii] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Para o STJ injúria é crime de racismo. Será? Disponível em https://eduardocabette.jusbrasil.com.br/artigos/383442042/para-o-stj-injuria-e-crime-de-racismo-sera , acesso em 07.07.2021. Vide também: CUNHA, Adenauer. STF equipara injúria racial a racismo e crime passa a ser imprescritível; no Tocantins movimento negro comemora decisão inédita. https://conexaoto.com.br/2018/06/07/stf-equipara-injuria-racial-a-racismo-e-crime-passa-a-ser-imprescritivel-no-tocantins-movimento-negro-comemora-decisao-inedita , acesso em 07.07.2021. E ainda: ROMANO, Rogério Tadeu. A Injúria Racial é Crime Imprescritível. Disponível em https://jus.com.br/artigos/66929/a-injuria-racial-e-crime-imprescritivel , acesso em 07.07.2021.
[iv] Vale para o caso, “mutatis mutandis”, a interpretação de que a majorante deve ser estendida do executor para o mandante, conforme já vem apontando a doutrina majoritária com relação ao chamado “crime mercenário” (paga ou promessa de recompensa – artigo 141, § 1º., CP). Por todos, vale a lição de Bitencourt que afirma que “mandante e executor respondem igualmente pelo crime com pena majorada”. Cf. BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 457.
[v] REDES Sociais. Disponível em https://resultadosdigitais.com.br/especiais/tudo-sobre-redes-sociais/# , acesso em 07.07.2021.