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Embriaguez ao volante e eventual incidência ou não do art. 301 do código de trânsito brasileiro


Por Joaquim Leitão Júnior

A redação dada pela Lei n.º 12.760, de 2012, trouxe inegáveis avanços no combate e repressão dessa prática que persiste ocorrer nos dias atuais, que é a embriaguez ao volante.

A dita lei que recebeu como denominação “Lei Seca” ou “Lei Seca Severa” trouxe como avanços a possibilidade de aferir a embriaguez por outros elementos probatórios, inclusive provas testemunhais. Isso deixou o ordenamento jurídico em maior sintonia tanto no aspecto incriminador quanto no âmbito probatório para se verificar a embriaguez. A mencionada lei trouxe também como avanço a possibilidade de constatar a embriaguez por termo de constatação de embriaguez, realizado pela força policial desde que em harmonia com a Resolução do CONTRAN n.º 432/2013.

Aliás, a mens legis dessa Lei n.º 12.760/2012 foi impor a intolerância zero com essa conduta gravíssima de embriaguez ao volante (embora tratada como infração de médio potencial ofensivo) que se dirige contra a coletividade, a paz pública, a segurança viária e a segurança do nosso trânsito, que ceifa mais vidas do que conflitos armados. Nessa esteira, o art. 306, dado pela redação da Lei n.º 12.760, de 2012, do Código de Trânsito Brasileiro, passou a dispor o seguinte:

Art. 306.  Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência: (Redação dada pela Lei n.º 12.760, de 2012.)

Penas – detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

  • 1.º  As condutas previstas no caput serão constatadas por:  (Incluído pela Lei n.º 12.760, de 2012.)

I – concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar; ou  (Incluído pela Lei n.º 12.760, de 2012.)

II – sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora.  (Incluído pela Lei n.º 12.760, de 2012.)

  • 2.º  A verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova.  (Incluído pela Lei n.º 12.760, de 2012.)
  • 3.º O Contran disporá sobre a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo. (Incluído pela Lei n.º 12.760, de 2012.)

Agora, mais recentemente, o legislador, com o advento da Lei n.º 12.971/2014, deu passos largos a fim de apertar o cerco na fiscalização e repressão do crime de embriaguez ao volante, inclusive na esfera administrativa, prevendo como multa administrativa a recusa do condutor de se submeter ao teste de alcoolemia ou etilômetro (vulgarmente conhecido como bafômetro), o que, devido a seu debate em torno da inconstitucionalidade ou não deste, será objeto de futuro artigo (adiantando nosso posicionamento pela constitucionalidade desse importante dispositivo legal).

Entretanto, a indagação que nos perturba é a seguinte: o art. 301 se aplica ao caso do art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro ou não nos casos de acidentes de trânsito de que resulte vítima?

Antes de propormos a resposta, cuida-se o art. 301 do CTB de mecanismo que livra o acusado de ser preso em flagrante da prática de crime no trânsito que resulte vítima quando prestar socorro prontamente e de forma integral a esta. Nesse prisma, o art. 301 do CTB dispõe que:

Art. 301. Ao condutor de veículo, nos casos de acidentes de trânsito de que resulte vítima, não se imporá a prisão em flagrante, nem se exigirá fiança, se prestar pronto e integral socorro àquela.

Sem ingressar na redação do apontado artigo, vale citar que parte da doutrina critica a expressão utilizada pelo legislador como “acidente de trânsito”, quando na verdade acena que melhor seria que o legislador tivesse empregado a terminologia “crimes de trânsito”, em razão de que para impor a prisão em flagrante é necessária a prática do crime, bem como sobre a redundância de não caber prisão – quem dirá dizer sobre fiança –, em que de qualquer forma o cerne da questão será a aplicação ou não do art. 301 do CTB, diante da prática do art. 306 do CTB.

Dito isso, passemos a enfrentar a indagação supra, em que se apresentam como respostas duas possíveis vertentes teóricas sobre o caso.

A primeira resposta pela leitura e interpretação literal fria do art. 301 do CTB seria pela possibilidade da incidência do art. 306 do CTB – livrando-se o condutor do flagrante e da fiança em caso de prestar socorro pronto e integral em acidente de trânsito de que resulte vítima[1]. Essa resposta estaria em harmonia com a aparente vontade expressa do legislador e possivelmente geraria até o pensamento de não existir outra conclusão possível, conquanto esse entendimento mereça uma boa “dose” de reflexão.

Devemos sempre lembrar que nem sempre a interpretação literal é a melhor alternativa que traz justiça e tutela efetiva aos bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal – o que poderia revelar hipertrofia da tutela penal com a vulneração dos bens jurídicos tutelados.

Desse modo, avancemos para a segunda resposta. Esta seria no sentido negativo, ou seja, não seria possível a aplicação do art. 301 do CTB ao caso do art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro, não se livrando o condutor embriagado do flagrante e da fiança em caso de prestar socorro pronto e integral em acidente de trânsito de que resulte vítima.

A resposta nesse ponto pode até causar espanto, mas deve ser no mínimo objeto de reflexão pelos profissionais do Direito, em que ela estaria calcada e aliada a mens legis e a todo o histórico das legislações repressivas e de políticas públicas voltadas à prevenção, fiscalização, ao combate, repressão e intolerância do crime do art. 306 do CTB, e que por isso as benesses do art. 301 do CTB não incidiriam no caso do art. 306 do CTB. Não se descuida de que realmente o condutor embriagado nesses casos deva agir num eventual acidente de trânsito com vítima, ocasionado por aquele, com espírito humano e solidariedade ao próximo (vítima) na prestação de socorro imediato e integral, mas daí extrair efeitos positivos em seu favor, em que ele se colocou em situação de perigo e risco, é prestigiar no mínimo a torpeza humana em detrimento da vida de outras pessoas e da proteção no trânsito.

Ademais, poder-se-ia cogitar eventual ponto um tanto injusto para essa corrente, porque essa pessoa embriagada que eventualmente dirigisse com prudência seria flagranteada[2] de qualquer forma (pelo plus da lesão ou outro resultado) e à pessoa que causou por si só apenas uma lesão culposa não seria imposta a prisão flagrancial nessa situação (exceto em caso de lesão corporal em concurso com a embriaguez que poderia causar discussão, em vista da embriaguez diante dessa segunda corrente).

A interpretação aqui seria teleológica e busca o espírito e as mens legis das sucessivas leis ao redor do tema (de intolerância zero aos condutores embriagados no trânsito), demonstrando a preocupação do legislador, embora existentes várias derrapagens jurídicas por parte deste.

Em outras palavras, para essa corrente seria um contrassenso e uma contradição o mesmo legislador e Poder Público, com todo o histórico das evolutivas legislações repressivas e políticas públicas crescentes voltadas à prevenção, fiscalização, ao combate, repressão e intolerância do crime de embriaguez ao volante, permitir essa benesse ao condutor para se livrar do flagrante delito do art. 306 do CTB. Por conseguinte, ao se admitir a primeira resposta (primeira corrente), teríamos aqui, na visão crítica dessa segunda corrente, uma espécie de carta branca ou de alforria para os condutores inconsequentes que usariam desse mecanismo legal como pretexto do socorro pronto e integral para sair ileso das garras penais e das suas inconsequências geradas anteriormente de forma voluntária num primeiro momento, em verdadeiro contrassenso da intolerância zero buscada pelo legislador ordinário.

Conclusão

Em desfecho das conclusões, pensa-se que essa segunda corrente está em maior compasso e sintonia com a política criminal e repressiva do legislador na via da intolerância zero nos crimes de embriaguez no trânsito, embora o debate sobre o tema esteja franqueado à classe jurídica.

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[1] Joaquim Leitão Júnior é Delegado de Polícia no Estado de Mato Grosso. Ex-assessor do Tribunal de Justiça de Mato Grosso. Pós-graduado em Ciências Penais pela rede de ensino Luiz Flávio Gomes (LFG) em parceria com Universidade de Santa Catarina (UNISUL). Pós-graduado em Gestão Municipal pela Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT e pela Universidade Aberta do Brasil. Curso de Extensão pela Universidade de São Paulo (USP) de Integração de Competências no Desempenho da Atividade Judiciária com Usuários e Dependentes de Drogas. Coautor da obra: Concursos Públicos – Terminologias e Teorias Inusitadas. Colaborador, colunista do site jurídico Justiça e Polícia e Professor de Cursos Preparatórios para Concursos Públicos.


Referências Bibliográficas:

ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Legislação penal especial. São Paulo: Saraiva, 2007.
LIMA, Marcellus Polastri. Crimes de trânsito: aspectos penais e processuais. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015.
MARCÃO, Renato. Crimes de trânsito: anotações e interpretação jurisprudencial da parte criminal da Lei n. 9.503, de 23 de 1997. 5. ed. rev., ampl. e atual. de acordo com a Lei n. 12.971/2014. São Paulo: Saraiva, 2015.
[1] Nesse ponto, importante lembrar o comando do art. 301 do CTB, que impede a prisão em flagrante nos casos de acidentes de trânsito nos quais o motorista preste pronto e integral socorro à vítima, no propósito de estimular a cidadania e a solidariedade em episódios dessa natureza (ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Legislação penal especial. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 189). Na mesma linha: LIMA, Marcellus Polastri. Crimes de trânsito: aspectos penais e processuais. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 102-104; MARCÃO, Renato. Crimes de trânsito: anotações e interpretação jurisprudencial da parte criminal da Lei n. 9.503, de 23 de 1997. 5. ed. rev., ampl. e atual. de acordo com a Lei n. 12.971/2014. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 122).
[2] Lembrando que o legislador, a maioria da doutrina e a jurisprudência têm defendido que é irrelevante o condutor embriagado dirigir de forma anormal ou não para fins de tipificação do art. 306 do CTB. A propósito, o penalista Renato Marcão, no que tange ao crime de embriaguez ao volante, ensina que:
Conduzir, para os fins do dispositivo em comento, significa dirigir, colocar em movimento mediante acionamento dos mecanismos do veículo. Veículo automotor: nos termos do Anexo I do Código de Transito Brasileiro, considera-se veículo automotor ‘todo veículo a motor de propulsão que circule por seus próprios meios, e que serve normalmente para o transporte viário de pessoas e coisas, ou para a tração viária de veículos utilizados para o transporte de pessoas e coisas’. O termo compreende os veículos conectados a uma linha elétrica e que circulam sobre trilhos (ônibus elétrico)”.
Antes da Lei 12.760, de 20.12.2012, o crime de embriaguez ao volante só se configurava se a condução de veículo automotor ocorresse na via pública. A atual redação do art. 306 abandonou tal critério, pois não contém referida elementar, de maneira que restará configurado o crime ainda que a condução do veículo, nas condições indicadas, seja verificada em qualquer local público (não necessariamente via pública) ou no interior de propriedade privada (chácara, sítio ou fazenda, por exemplo), o que representa considerável ampliação no alcance da regra punitiva. Tal ajuste guarda coerência com a tipificação dos crimes de homicídio culposo (art. 302 do CTB) e lesão corporal culposa (art. 303 do CTB), em que não há referência a via pública” (MARCÃO, Renato. Crimes de trânsito: anotações e interpretação jurisprudencial da parte criminal da Lei n. 9.503, de 23 de 1997. 5. ed. rev., ampl. e atual. de acordo com a Lei n. 12.971/2014. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 174).
Os Tribunais Superiores assim já decidiram que:
Mostra-se irrelevante, nesse contexto, indagar se o comportamento do agente atingiu, ou não, concretamente, o bem jurídico tutelado pela norma, porque a hipótese é de crime de perigo abstrato, para o qual não importa o resultado. […] Por opção legislativa, não se faz necessária a prova do risco potencial de dano causado pela conduta do agente que dirige embriagado, inexistindo qualquer inconstitucionalidade em tal previsão legal” (STF, 2.ª T., HC 109.269/MG, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 27.09.2011, DJe 195, 11.10.2011, RT 916/639).
“A embriaguez ao volante é caracterizada como delito de perigo abstrato” (STJ, 5.ª T., HC 166.117 /RJ, Rel. Min. Gilson Dipp, j. 03.05.2011, DJe 1.º.08.2011).
O crime previsto no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, com as alterações procedidas pelas Leis n. 11.705/08 e 12.760/12, é de perigo abstrato, sendo despicienda a demonstração de potencialidade lesiva na conduta” (STJ, 6.ª T., HC 183.463/MG, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 15.08.2013, DJe 26.08.2013).
E, quanto à consumação do referido crime sob nomen iuris de embriaguez ao volante, o mesmo penalista, Renato Marcão, afirma que:
“[…] Com o ato de conduzir veículo automotor, em local público ou em propriedade privada, estando com a capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência. Para a consumação não se exige a prática efetiva de qualquer conduta ou manobra que represente um conduzir ‘anormal’ e exponha a perigo concreto de dano a incolumidade de outrem” (MARCÃO, Renato. Crimes de trânsito: anotações e interpretação jurisprudencial da parte criminal da Lei n. 9.503, de 23 de 1997. 5. ed. rev., ampl. e atual. de acordo com a Lei n. 12.971/2014. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 189).

 

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