Embora não seja o primeiro “jogo” que induz ao suicídio, pois há que se recordar jogos tais como roleta russa, jogo da asfixia, “balconing” (filmar-se pulando de uma varanda a outra) ou o “planking” (fotografar-se em lugares altos, com o corpo em equilíbrio instável), entre tantos outros, nos últimos dias não se fala em outra coisa senão no Desafio da Baleia Azul, uma espécie de “jogo” virtual em que os participantes, em sua maioria pré-adolescentes ou adolescentes, têm uma série de desafios para cumprir, sendo o último o próprio suicídio.
Pois bem, tendo em vista a relevância do tema, pretendemos no presente artigo tratar dos principais aspectos criminais desse desafio ou qualquer outro semelhante a ele. Assim, questionamentos tais como: pratica crime quem participa do desafio? Se sim, qual crime? Quais a reais consequências penais para quem se envolve nesse “jogo”? De quem é a atribuição para investigar o suposto ato criminoso? Qual a competência para julgamento?
Bem, vamos lá!
Pelo que se pesquisou em diversas reportagens, bem como se extrai de alguns casos concretos, tal desafio consiste em cooptação de participantes, quase sempre adolescentes com perfil depressivo, por meio de redes sociais, para integrarem um grupo com um objetivo em comum, qual seja: realizar uma série de tarefas macabras, mais precisamente 50, até que ao final se tenha como último desafio o suicídio.
As tarefas ou os desafios, começam simples e vão aumentando em grau de dificuldade, assim como em periculosidade, indo desde assistir filmes de terror à automutilação, entre outros. Para que o leitor se familiarize melhor veja abaixo algumas da tarefas[i]:
Como se pode notar, os desafios são detidamente organizados para que o participante possa se imergir em um estado depressivo tal, ou sugestionável, que ao final retire sua própria vida.
Contudo, o mais interessante é que cada participante tem um “curador”, responsável por aceitar sua entrada no grupo, designar tarefas e fiscalizar seu cumprimento. Ainda, após aceitar participar o desafio, caso queira sair do “jogo”, o participante é coagido e ameaçado para que não o faça.
Interessante notar também, certamente como cada participante tem um “curador”, os desafios não são exatamente os mesmos para todos, sobretudo porque o “curador” passa a pesquisar o perfil do participante, lhe atribuindo tarefas adequadas ao seu mister.
Inicialmente, importante dizer que a tentativa de suicídio em si não é tipificada como crime (salvo se praticada com o fim fraudar seguro, no caso de estelionato), em razão do princípio da lesividade, ou seja, não haverá crime quando os atos praticados pelo agente não atingirem bens de outrem. Ademais, por questões de política criminal, não soa lógico punir criminalmente quem tenta retirar sua vida, havendo risco de aumentar o transtorno em que aquela pessoa está inserida.
Por outro lado, diversos crimes podem ser vislumbrados em relação àqueles que participam de suicídio alheio, a depender do caso concreto.
O crime de participação em suicídio é tipificado no nosso ordenamento jurídico no art. 122 do Código Penal, que criminaliza a conduta de induzir, instigar ou prestar auxílio para alguém suicidar-se.
Importante dizer que só haverá incidência neste tipo penal se a vítima for certa e determinada, considerando que a conduta deve recair sobre “alguém”, porém, como visto acima, no caso do desafio da baleia azul, cada participante tem um curador específico, sendo sua conduta dirigida ao fim de fazer cada um de seus “curatelados” suicidar-se.
Por outro lado, mesmo que a vítima seja adolescente, deverá ser capaz, assim, deve compreender sua ação ou ser possível determinar de acordo com esse entendimento, pois, se incapaz, haverá incidência típica no delito de homicídio doloso, não suicídio.
Não se pode esquecer, ainda, a causa de aumento de pena prevista no inciso II do art. 122 do CPB, na medida m que se a vítima é menor (tem até 18 anos incompletos) ou tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência, a conduta do agente é mais reprovável, duplicando-se a pena.
Finalmente, somente se configurará este crime se efetivamente o suicídio se consumar, ou restar à vítima lesão de natureza grave (ou gravíssima).
É de se notar que caso a vítima seja incapaz não tem poder de autodeterminação e, nas palavras de Rogério Sanches [ii]“deixa de haver supressão voluntária e consciente da própria vida, logo, não há suicídio. Nesse caso estamos diante de um delito de homicídio, encarando-se a incapacidade da vítima como mero instrumento daquele que lhe provocou a morte.“
No caso em apreço, é forçoso reconhecer, por uma interpretação sistemática e constitucional do Código Penal, que crianças ou adolescentes menores de 14 anos devem ser considerados incapazes para fins de enquadramento no delito de homicídio. Ora, se no delito de estupro de vulnerável (art. 217-A) se considera que o menor de 14 anos tem presunção absoluta de incapacidade, sendo delito contra a dignidade sexual, com muito mais razão um delito contra a vida deve ter essa proteção.
Não há se falar, nesse caso, em analogia in malam partem, mas sim em dar interpretação constitucional ao tipo penal, pois a compreensão da dimensão da vulnerabilidade atende à proteção constitucional que se dá às crianças e aos adolescentes, in verbis:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
É notório que crianças e adolescentes são mais sugestionáveis que jovens ou adultos, e por isso mesmo são os alvos que contam com a predileção de grupos dessa estirpe. Portanto, deve o Estado ofertar maior proteção a essas vítimas em potencial, como bem determina a Lei Maior.
Da mesma maneira como se vê no caso de homicídio, havendo frustração do intento inicial de ceifar a própria vida por orientação de terceiro, em sendo a vítima incapaz, advoga-se o enquadramento no delito de lesão corporal grave ou gravíssima, com a causa de aumento do § 7º do art. 129, conforme o caso concreto, não em participação em suicídio.
O mesmo raciocínio se aplica aqui, na medida em que se a vítima não pode se autodeterminar, serve de instrumento de outrem para praticar lesão em si mesma. Esse outrem, no caso o curador, deve responder pelo crime mais grave, pelas mesmas razões já expostas acima.
A lei penal também considera criminosa a conduta de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda (CPB, art. 146).
Desse modo, caso o participante do desafio queira sair do grupo e seja ameaçado ou constrangido a não fazê-lo, como, por exemplo, o curador ameace de causar mau injusto e grave à família do participante ou a ele próprio, há de se reconhecer a incidência no delito de constrangimento ilegal.
Ressalta-se, ademais, que o crime de constrangimento ilegal será absolvido pelo delito mais grave (homicídio, participação em suicídio ou lesão corporal) se, porventura, esses delitos se concretizem.
Finalmente, não se pode esquecer que os curadores se associam em grupos virtuais para fins de cometerem crimes, sejam eles homicídios, participação em suicídios, lesões corporais ou constrangimento ilegal. Desse modo, havendo mais de três pessoas associadas com esse intento, ou seja, havendo vínculos sólidos, estruturais e duráveis entre os curadores, independentemente da ocorrência desses crimes, já incidiram no delito de associação criminosa (CPB, art. 288), inclusive, com a possibilidade de prisão em flagrante a qualquer momento se houver permanência.
Há, também, a possibilidade de se configurar a causa de aumento do parágrafo único do art. 288 em razão da participação de criança ou adolescente. Nesse caso, participação no ato infracional como autores, não como vítimas.
Destarte, é possível que adolescentes que participam como integrantes desses grupos virtuais pratiquem ato infracional análogo aos crimes em comento, caso contribuam para o suicídio de outros membros. Obviamente, essa imputação de ato infracional deve ser encarada com reservas, para que não se confunda vítima com autores. Contudo, plenamente possível que um adolescente com mais maturidade seja o curador de outro ou mesmo induza, instigue ou auxilie outro participante levar a cabo as tarefas que podem culminar em sua morte ou lesão corporal.
Nos termos do art. 13, §2º, “c”, a omissão é penalmente relevante, entre outras possibilidades, quando com seu comportamento anterior o agente criou o risco do resultado. Nesse prisma de ideias, plenamente possível sustentar que o curador ao fazer nascer a ideia (induzir) determinada pessoa a expor-se em situação de risco, andando pendurando em um alto telhado ou se autolesionando, por exemplo, cria o risco do resultado morte ou lesão corporal.
Deve, portanto, evitar o resultado lesivo que com sua conduta anterior expôs a perigo a vítima, sob pena de responder pelo crime na modalidade comissiva por omissão, ou seja, a ele é imputado o resultado morte ou lesão corporal.
Em casos semelhantes, a doutrina é assente nesse sentido, apenas a título exemplificativo cita-se NUCCI [iii] quando nos ensina que o dever de agir por ter gerado o riso “é o dever surgido de ação precedente do agente, que deu causa ao aparecimento do risco. Exemplo: alguém joga outro na piscina, por ocasião de um trote acadêmico, sabendo que a vítima não sabe nadar. fica obrigado a intervir, impedindo o resultado trágico, sobe pena de responder por homicídio.“
Então, é irrelevante se o risco foi criado pessoalmente ou por meio da Internet virtualmente, pois o resultado não é virtual, mas sim sério e plausível de acontecer. Assim, sob qualquer prisma que se olhe, haverá responsabilidade penal do curador, seja comissivamente, seja como garante, na modalidade comissiva por omissão.
Muito embora esses delitos estejam sendo praticados pela Internet e, em sua maioria, tenham como vítimas crianças e adolescentes, analisando o art. 109 da CF/88, falece a competência da Justiça Federal para julgamento, não havendo enquadramento em qualquer situação que desloque a competência para o âmbito federal.
Para que seja firmada a competência da Justiça Federal, conforme definiu o Supremo Tribunal Federal, se fazem necessários três requisitos cumulativos: que o fato seja previsto como crime em tratado ou convenção; que o Brasil seja signatário de compromisso internacional de combate àquela espécie delitiva; que exista uma relação de internacionalidade entre a conduta criminosa praticada e o resultado produzido. Assim, ausentes qualquer dos requisitos, a competência será da Justiça Estadual.
O que pode, talvez, gerar confusão é o fato de crimes de pedofilia cometidos pela Internet serem julgados pela Justiça Federal, contudo, isso se dá em razão de o Brasil ser signatário da Convenção sobre os direitos da Criança, (Decreto 9.970/90), que obriga a repressão de delitos sexuais contra crianças e adolescentes. Desse modo, nos termos do art. 109, V, da CF/88 é afastada a competência da Justiça Estadual, conforme decidiu recentemente o STF (RE 628624).
No entanto, no caso dos crimes praticados pelos chamados “curadores” do desafio da baleia azul, não se vislumbra competência federal e sim do juízo estadual para processo e julgamento.
No que diz respeito à atribuição para investigar esses casos, a competência também será da Polícia Judiciária Civil estadual. Contudo, apesar de a Polícia Federal apurar em regra crimes em que haja interesse da União, o inciso I do § 1º do art. 144 da CF/88, in fine, permite que ela apure crimes que tenham repercussão interestadual ou internacional e exijam repressão uniforme.
Regulamentando a parte final do texto constitucional supramencionado, a Lei 10.446/02 traz uma lista de crimes que carecem da atuação da Polícia Federal. Ai, todavia, não se incluem os delitos já analisados, mas havendo necessidade de repressão uniforme e repercussão interestadual ou internacional, com a devida autorização do Ministro da Justiça, abre-se a possibilidade para que o crime seja apurado na esfera federal.
É bom lembrar, ainda, que a possibilidade de apuração dos crimes pela Polícia Federal não desloca a competência, por si só, para a Justiça Federal, nem tampouco afasta a atribuição investigativa da Polícia Judiciária Estadual, conforme caput do art. 1º da Lei 10.446/02.
Nesse sentido, nada impede que existam inquéritos paralelos nas esferas federal e estadual com o fito de apurar os diversos delitos noticiados.
De toda sorte, nota-se, pelo acervo de crimes já elencados, que dificilmente os “curadores” passarão incólume pela legislação penal pátria, sendo as condutas praticadas por eles altamente abjetas e reprováveis, pois se aproveitam de um quadro depressivo de pessoas ainda em tenra idade, para sugestioná-las ao suicídio.
Para conversar sobre suicídio ligue 141 – Centro de Valorização da Vida
Para denunciar casos concretos ligue 181/ 190 – Polícia Civil
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[iii] NUCCI, Guilherme de Souza, Manual de Direito Penal: parte geral: parte especial. 7 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 228.
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Muito bom, inclusive aqui durante o plantão vieram me perguntar sobre esse jogo, confesso que pouco sabia, agora já sei em que consiste e concordo com a análise feita. Parabens!
Obrigado Cesar Ávila!