Por Paulo Reyner
A Lei n. 13.964, de 24 de dezembro de 2019, que entrará em vigor no dia 23 de janeiro de 2020, denominada popularmente como Pacote Anticrime, nos trouxe grandes novidades, tais como acordo de não persecução penal, Juiz das Garantias, positivação do conceito de cadeia de custódia e criação de um protocolo legal para tanto, bem com alterações diversas no Código Penal, Código de Processo Penal, Lei 7.210/83, Lei 8.072/90, Lei 8.429/92, Lei 9.296/96, Lei 10.826/03, Lei 11.343/06, Lei 11.671/08, Lei 12.037/09, Lei 12.694/12 e Lei 12.850/13.
Sem qualquer pretensão de esgotar o assunto, que ainda é bastante recente, apresenta-se algumas considerações sobre o arquivamento do inquérito policial.
Destacando-se como uma das principais mudanças trazidas pela Lei n. 13.964/19 temos a nova sistemática no arquivamento do inquérito policial. Com a alteração feita pela referida legislação no art. 28 do Código de Processo Penal, o arquivamento deve ser feito no âmbito do próprio Ministério Público, sem a participação do Poder Judiciário, em regra.
Oportuno trazer à tona a discussão existente sobre destinação do inquérito policial.
Histórico jurídico sobre a tramitação do Inquérito Policial
Note, o §1º do art. 10 do CPP não foi revogado expressamente, sendo dispositivo que impõe a remessa do IP ao Poder Judiciário, não ao Ministério Público:
Art. 10. O inquérito deverá terminar no prazo de 10 dias, se o indiciado tiver sido preso em flagrante, ou estiver preso preventivamente, contado o prazo, nesta hipótese, a partir do dia em que se executar a ordem de prisão, ou no prazo de 30 dias, quando estiver solto, mediante fiança ou sem ela.
§ 1o A autoridade fará minucioso relatório do que tiver sido apurado e enviará autos ao juiz competente.
É certo quem em diversos estados brasileiros, por meio de ato infralegal, ocorre a sistemática de envio tanto dos pedidos de dilação de prazo, visando mais tempo para concluir as investigações, quanto da remessa final do inquérito concluído diretamente ao MP. Todavia, o STF decidiu pela inconstitucionalidade dessa tramitação direta do IP entre Polícia Judiciária Civil e Ministério Público.
A decisão supramencionada levou em consideração, sobretudo, a competência da União para estabelecer normas gerais sobre procedimentos, não podendo, portanto, legislações estaduais disciplinarem de maneira diferente das normas gerais do CPP. Sobre esse tema tivemos oportunidade de escrever um pouco na obra Peças e Prática da Atividade Policial[i]. Veja o trecho destacado:
Após o advento do texto constitucional de 1988, com a adoção do sistema acusatório, com clara separação das funções de investigar, acusar e julgar e, ainda, com a proeminência do Ministério Público como dominus litis (autor da lide) no processo penal em ações penais públicas (art. 129, I, da CF/88), tornou-se sem sentido a tramitação do IP entre Polícia Judiciária e Juiz.
Desse modo, a sistemática legal é a seguinte: o Delegado remete o IP ao Juiz, que o remete ao MP para vistas, o qual, por seu turno, pode requerer novas diligências; assim, o IP retorna ao Juiz, que o remete novamente ao Delegado de Polícia para o cumprimento das diligências requeridas pelo MP. Da mesma forma, ocorre quando há necessidade de dilação de prazo para conclusão das investigações em uma contraproducente lógica.
Para evitar esse percurso longo, alguns Estados e Tribunais adotam a sistemática da tramitação direta entre Polícia e MP, por meio de leis estaduais ou portarias, respectivamente.
Foi ajuizada, contudo, a ADI 2886/RJ contra a Lei Orgânica do Ministério Público do Rio de Janeiro (LC n.º 106/2003) que previu a tramitação direta do IP entre Polícia e MP, com fundamento na usurpação da competência da União para legislar sobre Direito Processual Penal.[ii]
Apesar de o inquérito ser considerado um procedimento (não um processo), a União detém competência para disciplinar regras gerais sobre procedimento em matéria processual (art. 24, XI, da CF/88) e o fez por meio do § 1º do art. 10 do CPP; assim, instado a se manifestar sobre o tema, o STF decidiu que a norma prevista na LC n.º 106/2003 – RJ, é inconstitucional por violar o disposto no Código de Processo Penal.
Apesar da posição do Supremo, alguns Estados continuam a realizar a tramitação direta e, inclusive no âmbito Federal, há a Resolução 063/2009 – do Conselho da Justiça Federal – CJF, que determina a tramitação direta dos inquéritos entre a Polícia Federal e o Ministério Público Federal. Esta Resolução também está sendo questionada por meio da ADI 4.395, ainda sem julgamento.
De outra sorte, importante salientar que o STJ considerou legal portaria editada por Juiz Federal, com fundamento na Resolução n.º 063/09-CJF, que estabeleceu a tramitação direta do IP entre PF e MPF. (STJ. 5ª Turma. RMS 46.165-SP, Rel. Min. Gurgel de Faria, julgado em 19/11/2015)
Nesse ponto, parece-nos que as decisões do STF e STJ são contraditórias, eis que o primeiro entende que sequer Leis Estaduais podem disciplinar sobre procedimentos em matéria processual de maneira diferente da União, enquanto o segundo aceita que uma mera Resolução contrarie norma nacional. Assim, somente quando do julgamento da ADI 4.395 a questão será pacificada.
Por fim, salienta-se que, em junho de 2016, o Conselho Nacional do Ministério Público aprovou proposta de Resolução Conjunta (com Conselho Nacional de Justiça – CNJ), que regulamenta a tramitação direta do inquérito entre a Polícia Judiciária e Ministério Público (n.º 0.00.000.001045/2013-24), alegando, em síntese, economia processual, celeridade e eficiência da gestão pública. A proposta seguiu para a análise junto ao CNJ, contudo, ante a posição do STF, corre o risco de ser afastada também.
Entendemos contraproducente e sem sentido a tramitação do IP tendo como intermediário o Poder Judiciário, que só deveria se manifestar em casos de medidas cautelares com reserva jurisdicional considerando a preservação dos direitos e garantias fundamentais.
Ademais, lembra-se que a tramitação direta não retira do Poder Judiciário o controle do inquérito, havendo mecanismos para isso. Poderia, assim, a primeira remessa ser registrada no tribunal competente e as demais seguirem o rito da tramitação direta.
Da mesma forma, não retira a possibilidade de o Delegado de Polícia se comunicar diretamente com o Juiz quando necessário, usando sua capacidade postulatória, independentemente da opinião do Ministério Público, que poderá exarar parecer concordando ou não com o Delegado.
Da revogação tácita do §1º do art. 10 do CPP
Importante ressaltar, todavia, que a decisão do STF mencionada no trecho acima é anterior à Lei 13.964/19, podendo-se falar que houve superação legislativa da jurisprudência, atividade legítima do Congresso Nacional em interpretar, também, o texto constitucional.
Nesse sentido, como o próprio CPP foi modificado, considerado regra geral sobre procedimento em matéria processual penal, não havendo mais controle judicial sobre o arquivamento do inquérito, nos parece que deve prevalecer o entendimento de remessa direta dos autos do IP ao órgão do Ministério Público com atribuição para oficiar no feito.
O arquivamento do IP era, até então, considerado ato complexo, caracterizado pela vontade de dois órgãos diversos, quais sejam: o Juiz competente e o membro do Ministério Público.
Com a inovação legislativa temos não um ato complexo, mas sim de um ato composto, em que, embora sejam necessárias duas vontades, a vontade de um órgão é instrumental em relação à do outro, justamente o que ocorre com a homologação.
No caso da nova disciplina do arquivamento do IP, a homologação da instância de revisão ministerial é considerada ato instrumental, se limitando à verificação da legitimidade do ato principal proferido pelo membro do MP. Veja o art. 28 do CPP com a nova redação e sua comparação com a redação anterior:
Um raciocínio possível que se faz do novo dispositivo legal substitutivo da antiga redação do art. 28 do CPP é no sentido da desnecessidade de envio dos autos do IP para o juiz competente, já que ele não participará, como era antes, do ato de arquivamento. Assim, ao concluir a investigação o Delegado de Polícia deveria remeter os autos do órgão do Ministério Público.
Outro caminho que pode ser trilhado, mas pouco provável de ser adotado por ser contraproducente, seria o envio dos autos do IP ao Juiz competente (Juiz das Garantias) e esse, por sua vez, sem opinar sobre o arquivamento, encaminharia ao Ministério Público, em observância ao disposto na legislação processual.
De toda sorte, é bom destacar que o Juiz das Garantias deve ser comunicado sobre a instauração de qualquer investigação criminal, conforme assevera o inciso IV do art. 3º-B do CPP. Assim, não é absurdo interpretar que ao final da investigação, concluído o IP, devem os autos respectivos ser encaminhados a ele.
Essa última opção, contudo, nos parece menos compatível com o sistema acusatório e toda disciplina que o legislador quis apresentar com a Lei n. 13.964/19. Desse modo, parece acertado, em análise perfunctória, entender pela revogação tácita § 1º do art. 10 após a vigência da nova redação do art. 28 do CPP.
Do controle judicial das omissões do órgão do Ministério Público no arquivamento do inquérito policial
Dúvida plausível pode surgir em relação ao chamado arquivamento implícito, compreendido como o fenômeno de ordem processual decorrente de o titular da ação penal deixar de incluir na denúncia algum fato (objetivo) ou algum dos indiciados (subjetivo), sem expressa manifestação ou justificação deste procedimento.
A doutrina entendia que, nesse caso, deveria o Juiz remeter os autos ao Procurador-Geral de Justiça em observância ao art. 28 do CPP em sua redação original, a fim de evitar a indevida inação ministerial e, por consequência, o arquivamento implícito.
Porém, como visto, não existe mais tal previsão. Daí a dúvida: poderia o Juiz das Garantias, ao observar omissão por parte do órgão denunciante, remeter os autos novamente ao Ministério Público, ou essa atribuição caberia ao próprio Parquet, em seu órgão de revisão ministerial?
Se mostra pertinente tal questionamento, vez que como não houve arquivamento explícito, o órgão do Ministério Público não comunicará à vítima, ao investigado ou à autoridade policial, restando apenas ao Poder Judiciário realizar esse controle. Nem mesmo a instância de revisão ministerial ficará sabendo da omissão!
Afastada a possibilidade de acordo de não persecução penal (art. 28-A do CPP), a transação penal (art. 76 da Lei 9.099/95) e o acordo de não denunciar (§4º do art. 4º da Lei 12.850/13), a doutrina e jurisprudência, considerando o princípio da obrigatoriedade, não reconhecem a legitimidade do arquivamento implícito.
Basta imaginar situação em que houve inquérito policial instaurado, indiciamento de dois indivíduos pela prática dos crimes de homicídio e ocultação de cadáver, mas oferecimento da denúncia apenas pelo crime de homicídio em relação a um dos investigados, sem qualquer manifestação do órgão ministerial sobre o outro crime e, ainda, sobre o outro indiciado. Nesse prisma de ideias, defende-se a possibilidade de o Poder Judiciário exercer controle sobre eventuais omissões do Ministério Público que possam ensejar arquivamento implícito, sob pena de ausência total de controle e proteção deficiente do Estado.
O Juiz das Garantias deve ultrapassar visão monocular de proteção apenas dos direitos fundamentais do investigado para garantir, também, os direitos das vítimas e, em última análise, de toda a sociedade.
O Poder Judiciário ainda pode determinar arquivamento do Inquérito Policial?
Por outro lado, impende mencionar que, mesmo com a figura do Juiz das Garantias, permanece sua competência para analisar a legalidade da investigação (art. 5º, inciso XXXV, da CF/88 c/c art. 3º-B, caput, do CPP), a preservação dos direitos fundamentais do investigado e, principalmente, consta competência expressa para dilação do prazo do inquérito policial com indiciado preso (Art. 3º-B, §2º), assim como decidir sobre o trancamento do inquérito policial e habeas corpus na fase pré-processual.
Possível, destarte, que exista determinação excepcional por parte do Juiz das Garantias para trancamento do inquérito, uma vez deferida ordem em sede de habeas corpus, conforme incisos IX e XII do art. 3º-B do CPP.
Lembra-se, além disso, o disposto no art. 27 da Lei n.º 13.869/19 (Lei de Abuso de Autoridade), o qual requer justa causa para instauração de procedimento investigatório, sob pena de configurar-se modalidade de abuso de autoridade, tem que trataremos em outra oportunidade.
Art. 27. Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Parágrafo único. Não há crime quando se tratar de sindicância ou investigação preliminar sumária, devidamente justificada.
No entanto, se faz necessário dizer que trancamento do inquérito não é sinônimo de arquivamento. Como bem salienta o insigne doutrinador Renato Brasileiro, “o trancamento é medida de força que acarreta a extinção do procedimento investigatório, funcionando como importante instrumento de reação defensiva à investigação que caracterize constrangimento ilegal”, enquanto o arquivamento (era) ato complexo, que exigia, necessariamente, a participação do Ministério Público.
Delegado de Polícia como fiscal no arquivamento do Inquérito Policial
Nota-se, finalmente, que os §§ 2º e 3º do art. 28 do CPP, com a nova redação trazida pela Lei n. 13.964/19, oportuniza à vítima, ou ao seu representante legal ou, ainda, à chefia do órgão a quem couber a sua representação judicial no caso de crimes em detrimento da União, dos Estados e dos Municípios a suscitação de revisão do arquivamento perante a instância competente do órgão ministerial.
Silencia, contudo, sobre essa possibilidade em relação ao Delegado de Polícia, em total incongruência com o caput do art. 28, dispositivo que determina a comunicação à autoridade policial sobre o arquivamento do IP.
Considerando a finalidade da lei descrita em seu próprio preâmbulo Aperfeiçoar a legislação penal e processual penal, é forçoso reconhecer a possibilidade de o Delegado de Polícia, um vez comunicado de eventual arquivamento de inquérito policial em que se vislumbre total discrepância com os fatos investigados e fundamentos jurídicos (ou mesmo ausência deles), possa, igualmente, no prazo de trinta dias do recebimento da comunicação, invocar razões contrárias ao arquivamento, remetendo-as ao órgão de revisão ministerial.
O raciocínio é bastante simples, na realidade brasileira em que as vítimas dificilmente são assistidas por advogado, não compreendem bem termos jurídicos e possuem temor reverencial em relação às autoridades públicas, a intenção da legislação em impor controle ao arquivamento, certamente, não se apresentará como suficiente. Basta verificar a quantidade de ações penais públicas subsidiárias ajuizadas, apesar de constitucionalmente previstas (artigo 5º., LIX, CF).
À luz do princípio da obrigatoriedade, bem como da proporcionalidade, na sua faceta de proibição de proteção deficiente, com vistas à efetividade da norma descrita no art. 28 e seus parágrafos, compreende-se como plenamente possível que o Delegado de Polícia fiscalize, junto com a vítima e o Poder Judiciário, o arquivamento do Inquérito Policial.
A última decisão sobre o arquivamento, evidentemente, ficará sempre a cargo do próprio Ministério Público por meio do seu órgão de revisão, porém, considerando as razões invocadas pelo Delegado e mesmo pelo Juiz das Garantias, com maior amplitude e possibilidade de acerto e correções eventuais.
Apesar da evidente escassez doutrinária sobre o recente tema, que será com absoluta certeza objeto de estudo por parte dos melhores doutrinadores, bem como de análise detida da jurisprudência doravante, espera-se ter contribuído para o debate de ideias com a finalidade de atender um dos bens de maior relevância para a sociedade, a segurança.
Sobre o autor: Paulo Reyner é Delegado de Polícia Civil e ex-Policial Militar. Graduado em Direito pela Universidade do Distrito Federal – UDF, Especialista em Ciências Criminais e Especialista em Políticas e Gestão em Segurança Pública. Autor do livro Peças e Prática da Atividade Policial e administrador do site Justiça & Polícia. Professor de cursos preparatórios on-line para Delegado de Polícia: https://cursos.juspol.com.br/
[i] MOUSINHO. Paulo Reyner Camargo. Peças e prática da atividade policial. 1 ed. Macapá, AP: Ed. do Autor, 2017. p. 99-103.
[ii] Dizer o Direito. Tramitação direta do inquérito policial entre a Polícia e o Ministério Público. Disponível em: http://www.dizerodireito.com.br/2014/05/tramitacao-direta-do-inquerito-policial.html>. Acesso em 29 set. 2016.