Por Abraão Trani de Almeida
Desde o estabelecimento da República como forma de governo, uma das máximas que sempre regeu a sociedade tupiniquim pode ser resumida, em poucas palavras, como “ao cidadão é autorizado fazer tudo que não seja defeso por lei”.
O axioma é uníssono mesmo entre vertentes que divergem até mesmo em questões principiológicas, contudo o atual cenário mundial fez surgir algumas dúvidas quanto a sua força coercitiva.
A situação grave de saúde pública vivenciada em diversos entes federativos tem o condão de relativizar a máxima susodita?
A expressão “lei” abrange decretos de Prefeitos, Governadores e do Presidente da República? Se a resposta é positiva, os decretos são materialmente constitucionais? É possível restringir direitos previstos na constituição através de atos de apenas um poder (no caso do executivo)?
Esse o tema que o presente artigo em poucas linhas busca desanuviar.
Via de regra, a convivência em sociedade é ordenada por normas que surgem a partir da participação do poder legislativo e do poder executivo. Salvo algumas exceções, é o conceito de freios e contrapesos adotado em vários países do mundo que estabelece ao menos a participação de dois poderes no processo de criação de normas.
“Para a separação funcionar, existe o sistema de freios e contrapesos, consagrado pelo pensador francês Montesquieu em sua obra “O Espírito das leis”. “Quem formula as leis não pode ser responsável pela sua execução, e quem é responsável pela sua execução não pode ser responsável por decidir se essas leis são constitucionais ou não”, resume o cientista político Ricardo Caldas.
Todo o sistema pode ser exemplificado pelo processo de tramitação de um projeto de lei. Para uma lei ser aprovada, é preciso maioria de votos nas duas Casas Legislativas – Câmara e Senado. “Se o Congresso legislasse sozinho, ele poderia se tornar um órgão soberano, seria o órgão mais influente de todos. Para evitar que o poder do Congresso seja excessivo, existe a figura do veto. O poder Executivo pode vetar leis que venham do poder Legislativo. Essa é uma fórmula clássica dos checks and balances [freios e contrapesos]”, explicou.”[i]
O código penal prevê pena máxima de um ano de detenção a quem, mediante violência ou grave ameaça, obrigar alguém a fazer ou deixar de fazer algo que não esteja previsto em lei.
Constrangimento ilegal
Art. 146 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:
Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.
O crime acima tem como objetivo resguardar o inciso II do art. 5º de nossa lei maior:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
Nas palavras do mestre Celso Antônio Bandeira de Mello:
“Note-se que o preceptivo não diz “decreto”, “regulamento”, “portaria”, “resolução” ou quejandos. Exige lei para que o poder público possa impor obrigações aos administrados. É que a Constituição brasileira, seguindo tradição já antiga, firmada por suas antecedentes republicanas, não quis tolerar que o Executivo, valendo-se de regulamento, pudesse, por si mesmo, interferir com a liberdade ou a propriedade das coisas.”[ii]
Um decreto, per si, emana de somente um poder, sem que outro atue nesse processo de criação e, por isso, não possui a mesma força normativa de uma lei, devendo ter esta como arrimo.
Estariam então os chefes do executivo cometendo crimes? suas determinações seriam ilegais? seriam tais determinações, como alguns pseudojuristas propagam, inconstitucionais?
A resposta é não.
Em seis de fevereiro do corrente ano, foi publicada a lei federal 13.979/20 que, dentre outras previsões, autoriza que, para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar diversas medidas, dentre elas o isolamento e a quarentena.
Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas: (Redação dada pela Medida Provisória nº 926, de 2020)
I – isolamento;
II – quarentena;
III – determinação de realização compulsória de:
a) exames médicos;
b) testes laboratoriais;
c) coleta de amostras clínicas;
d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou
e) tratamentos médicos específicos;
IV – estudo ou investigação epidemiológica;
V – exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver;
VI – restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de: (Redação dada pela Medida Provisória nº 926, de 2020)
a) entrada e saída do País; (Incluído pela Medida Provisória nº 926, de 2020)
b) locomoção interestadual e intermunicipal; (Incluído pela Medida Provisória nº 926, de 2020)
VII – requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa;
VIII – autorização excepcional e temporária para a importação e distribuição de quaisquer materiais, medicamentos, equipamentos e insumos da área de saúde sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa considerados essenciais para auxiliar no combate à pandemia do coronavírus, desde que:(Redação dada pela Lei nº 14.006, de 2020)
a) registrados por pelo menos 1 (uma) das seguintes autoridades sanitárias estrangeiras e autorizados à distribuição comercial em seus respectivos países:(Redação dada pela Lei nº 14.006, de 2020)
1. Food and Drug Administration (FDA);(Incluído pela Lei nº 14.006, de 2020)
2. European Medicines Agency (EMA);(Incluído pela Lei nº 14.006, de 2020)
3. Pharmaceuticals and Medical Devices Agency (PMDA);(Incluído pela Lei nº 14.006, de 2020)
4. National Medical Products Administration (NMPA);(Incluído pela Lei nº 14.006, de 2020).[iii]
A própria norma explica o conceito de isolamento e quarentena, vejamos:
Art. 2º Para fins do disposto nesta Lei, considera-se:
I – isolamento: separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus; e
II – quarentena: restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus.
Por unanimidade, o plenário do Supremo Tribunal.Federal, não só julgou a lei constitucional, mas estendeu a prerrogativa momentânea aos chefes dos executivos estaduais e municipais.
“O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, confirmou o entendimento de que as medidas adotadas pelo Governo Federal na Medida Provisória (MP) 926/2020 para o enfrentamento do novo coronavírus não afastam a competência concorrente nem a tomada de providências normativas e administrativas pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios. A decisão foi tomada nesta quarta-feira (15), em sessão realizada por videoconferência, no referendo da medida cautelar deferida em março pelo ministro Marco Aurélio na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6341.
A maioria dos ministros aderiu à proposta do ministro Edson Fachin sobre a necessidade de que o artigo 3º da Lei 13.979/2020 também seja interpretado de acordo com a Constituição, a fim de deixar claro que a União pode legislar sobre o tema, mas que o exercício desta competência deve sempre resguardar a autonomia dos demais entes. No seu entendimento, a possibilidade do chefe do Executivo Federal definir por decreto a essencialidade dos serviços públicos, sem observância da autonomia dos entes locais, afrontaria o princípio da separação dos poderes.”[iv] (grifo nosso).
A supracitada lei vigorará enquanto durar o estado de emergência de saúde internacional decorrente do coronavírus.
Fiquem em casa.
Abraão Trani de Almeida é Delegado de Polícia Civil do Estado do Amapá desde 2010. Especialista em segurança pública pela AVM faculdade integrada.
[i] http://www2.planalto.gov.br/mandatomicheltemer/acompanhe-planalto/noticias/2018/10/sistema-de-freios-e-contrapesos-garante-harmonia-entre-os-poderes
[ii] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio; CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO; 20ª Ed.; 2005; pág. 318 e 319;
[iii] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Lei/L13979.htm
[iv] http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=441447&ori=1
O DELEGADO DE POLÍCIA COMO GESTOR DE SEGURANÇA PÚBLICA: UMA NOVA VISÃO Por Paulo Reyner O…
Por Joaquim Leitão Júnior[i] Apesar de ainda existirem questionamentos por ala conservadora e classista da…
Há mais de seis anos este autor já vinha estudando o fenômeno do denominado “Stalking”,…
Os crimes hediondos e equiparados, na redação original da Lei 8.072/90, já tiveram regime “integral”…
Na onda midiática do famigerado “Caso Lázaro” vem a lume um artigo da lavra de…
O chamado “Pacote Antricrime”, que se materializou na Lei 13.964/19, foi objeto de vários vetos…
This website uses cookies.