Certamente o filme Tropa de Elite foi um marco para o cinema nacional, seja pela retratação da realidade nua e crua da Polícia carioca, seja pela brilhante atuação do protagonista, interpretado pelo ator Wagner Moura. Finalmente a população teve uma pequena noção do cotidiano do policial brasileiro e suas peculiaridades, bem distante do estereótipo americanizado.
A ideia do anti-herói policial, fazendo justiça com as próprias mãos em razão das diversas falhas no sistema de persecução penal brasileiro e da mal sucedida política de Segurança Pública logo ganhou o gosto da população, que cada vez mais aplaude a morte de bandidos, sobretudo os considerados “irreversíveis”. Afinal, quem nunca repetiu “bota na conta do papa” ou “o sistema é foda parceiro”.
Não, não. Não pense que este é mais um artigo sobre direitos humanos, ou como dizem alguns “direitos dos manos”, cujo intuito muitas vezes é criticar a atuação policial, sem conhecer os meandros da atividade.
Ao contrário, o que se pretende comentar aqui é um pouco mais profundo, consubstancia-se em direito do policial, sobretudo no direito de carregar sobre seus ombros apenas o que a lei lhe impõe.
Ressalto o apenas que não é pouco, pois sabemos que o árduo serviço policial requer abnegação no cumprimento do dever e abdicação de diversos prazeres simples da vida, mas procurando limitar a responsabilidade que cada vez mais é atribuída à Polícia, não raro tachada de ineficiente, corrupta, truculenta e outros adjetivos mais.
Ocorre que passados mais de oito anos da estreia do aludido filme, o que se viu e percebe é a importação dos métodos explicitados na trama. O que era realidade adstrita ao Rio de Janeiro, em razão das mais de seiscentas favelas dominadas pelo tráfico de drogas por omissão do Estado durante bastante tempo, agora parece ter ganhado o Brasil.
O tipo de criminalidade enfrentada no sudeste brasileiro, nomeadamente nos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo, onde facções criminosas estão comumente armadas com fuzis 7.62, 5.56, A.K 47, munições traçantes, onde policiais são mortos fortuitamente, são cenas dignas de guerras e, infelizmente, estão se tornando realidade da maior parte do país.
Assim, a carga emocional do Capitão Nascimento, ao que tudo indica, tem se tornado a de todo o policial brasileiro.
Tropa de Elite nos seduz, mas também nos faz refletir.
Diante de tantos acontecimentos que temos presenciado no âmbito da Segurança Pública do país, sobretudo o aumento vertiginoso da criminalidade, assim como a crescente sensação de insegurança e notícias de execuções por parte de policiais, impossível não haver nenhum questionamento sobre a postura e as regras de conduta dos profissionais de Segurança Pública.
Os agentes de segurança pública, principalmente os policiais, como todos, estão inseridos no organismo social e sofrem as pressões de nossa sociedade imediatista, sempre à procura por resultados eficientes e eficazes, em curto prazo, contra problemas historicamente complexos.
Nesse contexto, encontra-se o problema da criminalidade, que cada vez mais se torna preocupante nos grandes centros urbanos, figurando a Polícia como um dos atores fundamentais para a compreensão e controle dos índices de violência.
Contudo, uma análise mais detida sobre a problemática nos conduz a acreditar que grande parte da violência vivenciada não se dá tão somente em razão da ausência ou omissão das forcas policiais que, ao contrário, cada vez mais têm encarcerado pessoas, mas sim em razão do não enfrentamento das raízes do problema da criminalidade, sobretudo dos crimes violentos e graves, tais como homicídios, tráfico de drogas, roubos (aqui incluídos latrocínios), geralmente praticados por indivíduos menos favorecidos economicamente, não raro, por falta de perspectivas que possibilitem vislumbrar um futuro melhor. Futuro esse que não lhes é oportunizado por falta de educação, lazer, cultura, emprego, além de, por óbvio, excesso de benesses legais, falta de segurança nos presídios,dentre outros aspectos que contribuem para o aumento da criminalidade.
Como estes problemas são “esquecidos” pelas autoridades públicas, as soluções imediatistas, com destaque às legislações penais simbólicas[i], que adiam a solução de conflitos sociais através de compromissos dilatórios, não têm o condão de mudar a realidade e são compreendidas como medidas populistas eivadas de aparentes soluções, que sobrecarregam as forças de segurança com problemas que não são de sua competência a resolução, incumbindo-lhes de um fardo que não pode ser carregado.
Tal pressão, em várias circunstâncias, leva policiais ao extremo de ultrapassar os limites legais, torturando, matando, enfim, abusando de sua autoridade, a fim de atender às demandas sociais que lhes são erroneamente imputadas.
É necessário entender que os órgãos de segurança pública, enquanto parte da sociedade, trazem em seus profissionais toda a carga valorativa disseminada ao longo do tempo, segregando pessoas de forma maniqueísta, boas ou más, mocinhos ou bandidos, heróis e vilões.
DIREITO PENAL DO INIMIGO
Dessa forma, os policiais são ensinados a ver o criminoso como inimigo, como oponente a ser eliminado, ou seja, um inimigo que precisa ser combatido e extirpado da sociedade.
Tal situação não é nem de longe novidade para os estudiosos do direito, havendo, inclusive, uma vertente teórica bastante disseminada conhecida como “Direito Penal do Inimigo”, preconizada por Gunther Jakobs, jurista alemão que advoga existir duas categorias de indivíduos: o cidadão e o inimigo do direito penal.
Para Jakobs todo ser humano nasce como status de cidadão, mas a partir de um momento há uma transição, quando alguém pratica um crime grave, reincide criminalmente, faz do crime sua atividade habitual ou integra uma organização criminosa.
Assim, a partir de então, torna-se inimigo do estado, do direito penal, não merecendo que seus direitos e garantias individuais sejam respeitados[ii]. Momento em que se tornam comum a prática da tortura, da imposição da força e de quaisquer meios a fim de assegurar que a sociedade perdure.
Deste modo, uma vez outorgada pelo Estado poderes para agir em seu nome e em última análise em nome da sociedade, policiais incorporam o papel de “vingador social”, extrapolando os limites do que lhe foi confiado.
É necessário ressaltar que no Brasil não é possível a adoção do direito penal do inimigo, pois nossa Constituição traz como princípio máximo a dignidade da pessoa humana e a igualdade entre as pessoas, não sendo possível, portanto, segregá-las em cidadãos e inimigos, merecendo todos tratamento igualitário.
Contudo, mesmo que em razão da ordem constitucional a adoção formal do direito penal do inimigo seja defeso ao Estado brasileiro, na prática a situação é bastante diferente, vez que o criminoso, pelos menos o desfavorecido economicamente, é sim tratado como inimigo desde a primeira abordagem policial no início da persecução penal, até o cumprimento da pena em estabelecimentos prisionais que sem mínimas condições de se manter animais, que se dirá seres humanos.
Assim, não há como negar que as instituições policiais são o reflexo da sociedade em que estão inseridas e o espelho do ordenamento jurídico que o compreende.
Uma sociedade leiga, ávida por soluções prontas e simplistas, exige muito pouca efetividade dos Poderes Públicos e, consequentemente, as polícias acabam atendendo aos anseios sociais imediatistas.
O Policial torna-se o vingador social. O vingador dos problemas negligenciados pelas Autoridades e demais setores da Administração Pública.
O vingador da pobreza, da falta de educação, de falta de políticas públicas de inclusão social e emprego. O vingador da violência sofrida, do filho sem pai, da mãe sem filho.
É uma síndrome contagiosa e igualmente perigosa. O filme não trata da lei nº. 9.455, que desde 1997 tipificou o crime de tortura. A tortura tem especial atenção da Constituição brasileira, que a equiparou aos crimes hediondos.
Não há menção também a qualquer que seja a pena aplicada, mesmo de um dia, um mês ou oito anos, é efeito automático da condenação a declaração da perda da função pública, ou seja, não necessita sequer de fundamentação judicial específica. Talvez dai tenha surgido a expressão “pede pra sair”.
O vingador torna-se um relegado, sem emprego, sem família e preso, cumprindo pena ao lado de tantos que ajudou a encarcerar.
Não bastasse isso, a violência continuará a aumentar, policiais e bandidos continuarão se enfrentando e sendo mortos uns pelos outros, enquanto a sociedade se deixa enganar por soluções simplistas.
Não, o policial não deve tratar a si mesmo como vingador da sociedade, até porque essa mesma sociedade vinga-se dele na primeira oportunidade, julgando-lhe quando comete erros e, inclusive, quando acerta.
Destarte, essa maquiagem dos reais fatores que necessitam de atenção por parte do Poder Público, responsáveis em grande parte pelo aumento da criminalidade, necessita ser exposta, de modo a criar conscientização coletiva de que a polícia só age quando todos os demais mecanismos estatais, aí compreendidos serviços sociais, educação, lazer, família, cultura, etc., falharam, havendo, assim, necessidade de atribuir responsabilidades a quem realmente as tem.
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[i] NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007. (Coleção Justiça e Direito.)
[ii] CANCIO MELIÁ, Manuel, in JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito Penal do Inimigo Noções Críticas. p. 35.
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Analise muito interessante da realidade policila. Vale a refexao
Obrigado por sua participação José Neto, ela realmente é muito importante para nós!
Reflexão bastante pertinente não só a nos policiais, mas a toda sociedade sobre que tipo de agente de segurança pública nós queremos ter.
Excelente comentário Neuton. Obrigado por sua participação!
Uma abordagem muito critica e construtiva a um assunto que vem crescendo vertiginosamente entre as classes Policiais. Da mesma forma que o crime ocupa o lugar do Estado onde este não chega, O Estado (na figura do Policial) quer resolver da sua forma a ausência da justiça em determinados casos. Parabéns pela reflexão.!
Muito obrigado por manifestar sua opinião Antônio Cláudio. Grande abraço!