Pacote anticrime amplia a observância aos princípios do contraditório e ampla defesa na investigação criminal – Justiça & Polícia

Pacote anticrime amplia a observância aos princípios do contraditório e ampla defesa na investigação criminal

Por Francisco Sannini 

INTRODUÇÃO

A partir do momento em que se verifica uma notitia criminis cabe ao Estado, por meio de suas agências vinculadas ao sistema de Justiça Criminal, dar início à persecução penal visando, em um primeiro momento, constatar se, de fato, houve um crime. Uma vez verificada a materialidade criminosa através de um procedimento de investigação criminal, busca-se reunir elementos indiciários sobre autoria, justificando, se for o caso, o exercício de uma pretensão acusatória por parte do titular da ação penal. Havendo justa causa, o processo penal é deflagrado, viabilizando, consequentemente, a prestação jurisdicional com a imposição de uma pena ao réu reconhecidamente culpado. 

Note-se que o direito de punir pertencente ao Estado passa, necessariamente, por uma persecução penal que legitime qualquer tipo de limitação aos direitos fundamentais do cidadão a ela submetido, que, vale dizer, jamais poderá ser visto como inimigo dentro de um Estado Democrático e Constitucional de Direitos. Nas lições de LOPES JR., “o que necessita ser legitimado e justificado é o poder de punir, é a intervenção estatal e não a liberdade individual”.[i]

Por obviedade, essa intervenção do Estado na vida das pessoas irá variar de acordo com a gravidade do crime, suas circunstâncias e, sobretudo, a fase em que a persecução penal se encontra, afinal, o juízo de culpabilidade ou, em palavras mais claras, a convicção sobre o envolvimento de uma pessoa em determinada atividade criminosa, varia na medida em que se avança na persecutio criminis

De maneira ilustrativa, para o início da persecução penal por meio de uma investigação criminal, basta a possibilidade de existência de uma infração penal. Ao longo deste procedimento busca-se comprovar a ocorrência do crime e seu provável autor. Isso significa que o exercício de uma pretensão acusatória depende de um juízo de probabilidade em relação à autoria, assim como a adoção de certas medidas cautelares, como, por exemplo, a prisão preventiva. Por outro lado, para que uma pessoa seja condenada não basta a existência de indícios de autoria; é necessário um juízo de certeza ou, como preferimos, de ausência de dúvidas razoáveis sobre a autoria. 

Nesse contexto, salta aos olhos que a persecução penal deve se desenvolver – durante todas as suas fases! – em absoluta consonância com os direitos e garantias fundamentais. Sob tais premissas, Fauzi Hassan Choukr conclui que 

(…) a dignidade da pessoa humana como fundamento maior do sistema implica a formação de um processo banhado pela alteridade, ou seja, pelo respeito à presença do outro na relação jurídica, advindo daí a conclusão de afastar-se deste contexto o chamado modelo inquisitivo de processo, abrindo-se espaço para a edificação do denominado sistema acusatório. Fundamentalmente aí reside o núcleo de expressão que afirma que o réu (ou investigado) é sujeito de direitos na relação processual (ou fora dela, desde já na investigação), e não objeto de manipulação do Estado.[ii]

É, justamente, em decorrência do postulado da dignidade da pessoa humana que sustentamos que os princípios constitucionais que dele emanam devem ser observados durante toda a persecução penal, incluindo a investigação criminal, ressalvando-se apenas as limitações impostas pelas características inerentes a esta fase preliminar. 

Não se pode, portanto, continuar admitindo uma visão reducionista acerca da investigação criminal, sempre tratada como um procedimento inquisitivo, sem qualquer compromisso com os direitos fundamentais das pessoas envolvidas nesta indispensável fase da persecução penal. Por óbvio, não olvidamos o fato de o inquérito policial[iii] ser uma peça “dispensável” para a propositura da ação penal. Entretanto, na prática, quase a totalidade dos processos são iniciados com base neste procedimento investigativo de polícia judiciária.

Na verdade, defendemos o entendimento de que a investigação criminal preliminar constitui um direito fundamental do indivíduo. É o que chamamos de devida investigação criminal constitucional. Ora, tendo em vista as consequências extremamente deletérias ocasionadas pelo processo, é imprescindível que antes do seu início fique demonstrada a prova da materialidade do crime e os indícios suficientes de autoria ou participação contra uma determinada pessoa, sendo que apenas um instrumento devidamente regulamentado por lei e conduzido pelo próprio Estado poderia viabilizar a justa causa necessária ao exercício de uma pretensão acusatória. 

Percebe-se, destarte, que muito além de um direito individual, a fase preliminar de investigação representa um obstáculo a ser superado pelo Estado antes de ingressar na fase processual com fim de exercer, de maneira legítima, o seu poder-dever de punir, cabendo ao Poder Judiciário realizar essa filtragem com base nos elementos coligidos na investigação criminal e expostos na ação penal cabível.[iv]

CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL

A doutrina, de um modo geral, repele com veemência a possibilidade da aplicação dos princípios do contraditório e da ampla defesa em sede de Inquérito Policial, argumentando, para tanto, que tais princípios seriam incompatíveis com as finalidades deste procedimento investigativo. Como já deixamos antever ao longo desse estudo, não podemos concordar com essas afirmações. 

No que se refere ao princípio da ampla defesa, não vemos campo para grandes discussões, sendo este princípio perfeitamente adequado à fase de investigação preliminar. Nas lições de LIMA, a defesa garante o contraditório e por ele se manifesta, afinal, a ampla defesa só é possível em virtude de um dos elementos do contraditório, qual seja: o direito à informação.[v] Em sentido semelhante se manifesta SAAD ao discorrer sobre a defesa na investigação criminal:

(…) é de se reconhecer que já há acusação, em sentido amplo, entendida como afirmação ou atribuição de ato ou fato à pessoa autora, coautora ou partícipe, em diversos atos do inquérito policial, como na prisão em flagrante delito; na nota de culpa; no boletim de ocorrência de autoria conhecida (…). Desta forma, o exercício do direito de defesa, eficaz e tempestivo, deve se iniciar no inquérito policial, permitindo-se então a defesa integral, contínua e unitária.[vi]

Do mesmo modo, parece-nos que também existe contraditório dentro da investigação criminal, ainda que de forma mitigada em observância as características inerentes a essa fase da persecução penal. Ora, se o contraditório significa a possibilidade de influenciar em determinada situação jurídica[vii], não restam dúvidas de que o investigado pode, mesmo que de forma não plena, intervir de forma favorável no rumo do procedimento investigativo. 

Por tudo isso, sustentamos que a fase preliminar de investigação criminal deve se pautar pelo princípio do “contraditório possível”, ou seja, nos limites em que sua observância não obste a efetividade do procedimento. É inegável que nesse ponto da persecução penal não se pode vislumbrar o contraditório em sua plenitude, mas esse direito deve ser garantido na sua forma mais ótima possível. 

Nesse cenário, temos a impressão de que o legislador vem, rotineiramente, reforçando os princípios do contraditório e ampla defesa dentro da investigação criminal. De maneira ilustrativa, a Lei 12.403/2011, que alterou o Código de Processo Penal na parte que trata das prisões e medidas cautelares diversas, estipulou em seu artigo 282, §3°, o contraditório antes do deferimento da medida, desde que não haja risco para a sua eficácia ou se trate de uma situação de urgência, hipóteses que autorizam a sua inobservância. 

Diante dessa determinação legal, considerando que diversas medidas cautelares são decretadas durante a fase pré-processual, concluímos que a intenção do legislador foi nortear a condução de toda a persecução penal, inserindo o princípio do contraditório na investigação criminal sempre que não houver risco à eficácia da apuração.

No mesmo sentido, a Lei 12.760/2012, que alterou o artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, onde está tipificado o crime de embriaguez ao volante, estipulou em seu conteúdo que o motorista terá direito a contraprova. Em nosso entendimento, trata-se de mais um exemplo de aplicação do princípio do contraditório na fase preliminar de investigação. 

Um novo capítulo dessa história foi recentemente editado por meio da Lei nº 13.245/16, que alterou o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil. Com essa inovação, assegurou-se, como uma das prerrogativas do advogado (e não do investigado, vale dizer), a possibilidade de examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de prisão em flagrante e de investigação de qualquer natureza (art.7º, inciso XIV). Do mesmo modo, garantiu-se à defesa a plena assistência aos investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade do respectivo interrogatório, por exemplo, possibilitando, ademais, a apresentação de razões e quesitos (art.7º, inciso XXI, alínea “a”). 

No intuito de ilustrar a observância dos princípios do contraditório e ampla defesa na fase de investigação, nos valemos de uma entre tantas experiências ao longo de nossa carreira como Delegado de Polícia. Durante uma apuração sobre eventual crime de Peculato, foi determinado, de maneira fundamentada, o formal indiciamento do investigado (art.2º, §6º, da Lei 12.830/13). Ocorre que após conhecer as razões que justificaram minha decisão, a defesa juntou petição nos autos do Inquérito Policial expondo razões que me convenceram a alterar meu convencimento. Com efeito, proferi nova decisão de desindiciamento. 

Nesse contexto, nos parece impossível negar a existência de contraditório e ampla defesa na investigação criminal. Note-se que a intervenção da defesa influenciou diretamente no resultado final do procedimento, repercutindo de maneira favorável ao investigado.

Feitas essas considerações, passamos ao estudo das inovações promovidas pelo famigerado Pacote Anticrime no que se refere à investigação criminal de integrantes das agências de segurança pública quando se tratar de fatos relacionados ao uso de força letal praticados no exercício da função. 

NOVA SISTEMÁTICA INVESTIGATIVA NOS CASOS DE USO DE FORÇA LETAL PELOS AGENTES DE SEGURANÇA PÚBLICA

Como é cediço, o denominado Pacote Anticrime promoveu mudanças significativas no Código Penal, Código de Processo Penal e em Legislações Extravagantes. Entre tais inovações, focamos no objeto deste estudo:

Art. 14-A. Nos casos em que servidores vinculados às instituições dispostas no art. 144 da Constituição Federal figurarem como investigados em inquéritos policiais, inquéritos policiais militares e demais procedimentos extrajudiciais, cujo objeto for a investigação de fatos relacionados ao uso da força letal praticados no exercício profissional, de forma consumada ou tentada, incluindo as situações dispostas no art. 23 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), o indiciado poderá constituir defensor.     (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 1º Para os casos previstos no caput deste artigo, o investigado deverá ser citado da instauração do procedimento investigatório, podendo constituir defensor no prazo de até 48 (quarenta e oito) horas a contar do recebimento da citação.     (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 2º Esgotado o prazo disposto no § 1º deste artigo com ausência de nomeação de defensor pelo investigado, a autoridade responsável pela investigação deverá intimar a instituição a que estava vinculado o investigado à época da ocorrência dos fatos, para que essa, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, indique defensor para a representação do investigado.     (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 6º As disposições constantes deste artigo se aplicam aos servidores militares vinculados às instituições dispostas no art. 142 da Constituição Federal, desde que os fatos investigados digam respeito a missões para a Garantia da Lei e da Ordem.     (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

Primeiramente, é preciso analisar as hipóteses fáticas que atraem esse novo regramento do artigo 14-A. Com relação ao sujeito passivo da investigação criminal, o dispositivo não deixa margens para dúvidas ao fazer menção ao artigo 144, da Constituição da República, abrangendo, destarte, policiais federais, policiais rodoviários e ferroviários federais, policiais penais, policiais civis, militares e dos corpos de bombeiro, além dos guardas municipais. Registre-se, todavia, que, nos termos do §6º, do artigo 14-A, a norma também alcança os integrantes das Forças Armadas, desde que os fatos investigados tenham relação com as missões para a Garantia da Lei e da Ordem. 

Já no que se refere ao objeto da investigação, ou seja, a notitia criminis, a norma se aplica apenas aos casos que envolverem fatos relacionados ao uso de força letal praticados – frise-se! – no exercício da função, seja de forma consumada ou tentada, incluindo as circunstâncias do artigo 23, do Código Penal, vale dizer, as causas justificantes do crime, tais como o estado de necessidade, a legítima defesa, o exercício regular do direito e o estrito cumprimento do dever legal. 

Nesse ponto é preciso registrar uma impropriedade da nova lei, que faz menção genérica ao artigo 23, do Código Penal, quando, na verdade, deveria limitar-se à excludente de ilicitude da legítima defesa. Isto, pois, não nos parece viável a incidência das demais justificantes para os fatos relacionados ao uso de força letal por policiais em geral no exercício de suas funções. Ora, por qual razão o agente policial se valeria de força letal no estrito cumprimento do dever legal, por exemplo?!

Não se pode perder de vista que em circunstâncias normais, o Estado, por meio de seus agentes, não tem o dever legal de matar. A única exceção seria para o caso de guerra declarada, onde se admite a pena de morte. Em tais hipóteses, o executor estaria agindo no estrito cumprimento do dever legal. 

Sob outro aspecto, também não nos parece viável a incidência das excludentes de ilicitude do exercício regular do direito ou do estado de necessidade para os fatos praticados por agentes policiais no exercício da função. Com efeito, entendemos que o novo regramento imposto pela Lei Anticrime só se aplica aos casos de legítima defesa, regulamentada pelo artigo 25, do Código Penal, que, por sua vez, também foi objeto de alteração pelo mesmo diploma legal. 

Nesse ponto, aliás, é pertinente destacar a nova circunstância caracterizadora de legítima defesa acrescentada pela Lei Anticrime no parágrafo único do artigo 25. Nos termos da lei, observados os requisitos do caput, considera-se também em legítima defesa o agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão à vítima mantida refém durante a prática de crimes. Nas lições de LESSA, trata-se de uma “legítima defesa protetiva”[viii], que se distingue da legítima defesa crassa, onde a vítima já está sofrendo uma agressão. Nesta nova modalidade, “a vítima mantida refém está agora sob risco de agressão, ou seja, existe a probabilidade (tendência favorável) dela ser agredida. O ‘risco’, assim, é a probabilidade ou chance patente de lesão ou morte. Já o ‘perigo’ (condição de causar o evento danoso) é o agressor”. Por obviedade, as regras do artigo 14-A também se aplicam à “legitima defesa protetiva”. 

Em conclusão, é preciso analisar o procedimento especial imposto na apuração de fatos relacionados ao uso de força letal pelos agentes de segurança pública. Isto, pois, no caput do artigo 14-A, do CPP, o legislador estabeleceu que nessas hipóteses o indiciado poderá constituir defensor, o que, sem dúvida, constitui um reforço à observância dos princípios do contraditório e ampla defesa na investigação criminal. 

Antes, todavia, de nos imiscuir no estudo desse novo procedimento, deve-se observar que em decorrência das chacinas ocorridas na década de 1990, no Rio de Janeiro, o Estado brasileiro foi condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos, oportunidade em que foram fixadas, entre outras, duas premissas importantes: 1-) a criação de mecanismos legais que impedissem a investigação de fatos pela mesma instituição envolvida na morte provocada pelo uso de força letal; 2-) viabilizar, por meio de atos normativos, a participação efetiva da vítima ou de seus familiares nas investigações sobre tais fatos. Ocorre que, apesar dessa decisão, até o momento não houve qualquer avanço legislativo nesse sentido, o que ensejou pertinente crítica por parte da doutrina:

A Corte de Direitos Humanos determinou a adoção de medidas legislativas ou de outra natureza necessárias para permitir às vítimas de delitos ou a seus familiares participar de maneira formal e efetiva da investigação de delitos conduzida pela polícia ou pelo Ministério Público. O art.14-A, ignorando por completo as vítimas, assegura somente ao investigado a participação no procedimento oficial.[ix]

Feita essa observação, passamos ao estudo do novo regramento. Note-se que o artigo 14-A estabelece no seu caput que o “indiciado poderá constituir defensor”. Ocorre que no seu §1º o legislador determinou que “o investigado deverá ser citado da instauração do procedimento investigatório”. Primeiramente, registramos a impropriedade do termo “citação”, que, tecnicamente, significa o chamamento do reú para o processo. No caso, o investigado deverá ser “intimado” sobre a deflagração do procedimento apuratório e não “citado”. 

Além dessa impropriedade, outra questão terminológica tende a gerar discussões jurídicas sobre o novo regramento. Isso porque no caput do dispositivo o legislador se vale do termo “indiciado”, sendo que no §1º ele emprega o adjetivo “investigado”. Note-se que essa variação no rótulo imposto ao sujeito passivo da investigação reflete diretamente no momento de incidência da norma. Com efeito, questiona-se: quando surge o dever do Estado-Investigação “intimar” o alvo das diligências apuratórias?

Ao que nos parece, a maioria da doutrina deve se posicionar pela “intimação” do sujeito passivo da investigação logo após a instauração do procedimento. Para CUNHA, o chamamento imposto pelo artigo 14-A deve ocorrer a partir do momento em que restar caracterizada a condição jurídica de investigado da pessoa até então suspeita, “independentemente da qualificação formal atribuída pela autoridade responsável pela investigação”.[x]  

Em sentido semelhante se manifesta DEZEM: “É importante notar que, embora no caput a lei fale em indiciado, no parágrafo primeiro ela fala em investigado. Não parece que o termo inicial para a prática desse ato seja o indiciamento, mas sim quando a pessoa emerge como suspeita na investigação”.[xi]

Não é esse, todavia, o nosso entendimento. Primeiramente, deve-se consignar que, na prática, na maioria absoluta dos casos, esse tipo de investigação já vai ser iniciada com o (s) sujeito (s) passivo identificado. Ora, nas hipóteses de mortes decorrentes de legítima defesa pelos agentes de segurança pública a própria notícia dos fatos é levada ao conhecimento do Estado pelos responsáveis pela intervenção, sendo certo que o novo regramento imposto pelo artigo 14-A, CPP, só terá incidência quando se alegar que a morte ocorreu nas circunstâncias do artigo 25, do Código Penal. Desse modo, conclui-se que nesses casos a investigação nasce, invariavelmente, com seu alvo determinado, razão pela qual, em se seguindo as doutrinas acima expostas, a “intimação” do (s) agente (s) público (s) deverá ser contemporânea à instauração do procedimento[xii].

Ocorre que, em nosso sentir, não foi por acaso que o legislador se valeu de rótulos distintos no caput e no §1º, do artigo 14-A, uma vez que tal distinção representará, na prática, uma sensível desburocratização da investigação, viabilizando, outrossim, uma resposta mais efetiva aos fatos por parte do Estado-Investigação, promovendo a função simbólica da investigação criminal.[xiii]

Partindo de uma interpretação sistemática do artigo 14-A, resta evidente que o seu caput vincula os parágrafos subsequentes. Destarte, concluímos que a inovação legislativa só confere o direito de constituir defensor ao “indiciado”, justamente porque é a partir desse momento que o sujeito passivo da investigação é formalmente apontado como provável autor de um crime, tornando-se, consequentemente, mais vulnerável a adoção de medidas que possam limitar seus direitos (prisão preventiva, sequestro de bens etc.). 

Registre-se que o §1º, do artigo 14-A, faz clara menção aos casos previstos no caput, ou seja, aos fatos relacionados ao uso de força letal por agentes públicos no exercício da função em que eles figurem como “indiciados”. O fato de o legislador empregar do termo “investigado” no §1º, se justifica porque, antes do formal indiciamento, o sujeito passivo da investigação criminal ainda figura como investigado. A ideia é, justamente, fomentar o engajamento da defesa nesse momento crucial do procedimento, o que, evidentemente, não impede, como em qualquer outra apuração, que o investigado possa constituir advogado desde o princípio da persecução penal, mesmo antes da instauração de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei. 

Temos a impressão de que a interpretação equivocada da norma em análise está diretamente ligada ao estudo deficitário do indiciamento pela doutrina pátria.[xiv] Não por acaso, sustentamos que o “formal indiciamento”, composto pelo termo de qualificação e interrogatório, vida pregressa e boletim de identificação criminal (que pode vir acompanhado da identificação datiloscópica), deve, necessariamente, ser precedido de uma decisão que justifique e fundamente, após análise técnico-jurídica sobre os fatos, o juízo de imputação que se realiza, conforme prevê o artigo 2º, §6º, da Lei 12.830/13. É o que denominamos de “indiciamento material”.

Na prática, portanto, a apuração de fatos relacionados ao uso de força letal por agentes de segurança pública no exercício de suas funções deve se desenvolver normalmente com a instauração do procedimento sem a necessidade de imediata “intimação” do investigado. Na verdade, nessas hipóteses a investigação deve ser formalizada para confirmar se, de fato, o policial agiu amparado pela excludente de ilicitude da legítima defesa. Em se confirmando a justificante em questão, não se pode cogitar qualquer violação ao ordenamento jurídico, razão pela qual o procedimento investigativo deve ser encerrado sem a necessidade da incidência da norma constante no artigo 14-A. 

Por outro lado, havendo indícios de que o agente público praticou um crime de homicídio, sem qualquer amparo no instituto da legítima defesa, emergindo, consequentemente, um juízo de culpabilidade sobre a sua pessoa, caberá ao responsável pela investigação fundamentar suas conclusões em uma decisão de indiciamento e, no mesmo ato, determinar a notificação do “investigado” para constituir advogado no prazo de 48 horas. 

Destaque-se que durante esse interregno o advogado do investigado poderá se inteirar de toda investigação – que, vale dizer, se desenvolveu com a restrição da sua publicidade visando à escorreita apuração dos fatos – e, a partir daí, levar adiante a melhor estratégia de defesa, podendo, inclusive, apresentar razões antes da formalização do indiciamento e, sobretudo, no desenrolar do interrogatório. 

Nos termos do artigo 14-A, §2º, nas hipóteses em que o investigado não constituir advogado dentro de 48 horas, o responsável pela investigação deverá intimar a instituição a que ele estava vinculado à época da ocorrência dos fatos, para que essa, em igual prazo, indique defensor para a representa-lo. 

Em conclusão, reitera-se que esse entendimento, além de desburocratizar a investigação criminal, assegura sua eficiência, garantindo a responsabilização de agentes públicos que praticaram crimes e, ao mesmo tempo, reforça a participação da defesa nesses casos, evitando, consequentemente, eventuais equívocos por parte do Estado-Investigação. No final e ao cabo, a interpretação que se propõe neste estudo busca promover a correta aplicação do jus puniendi estatal. 


FRANCISCO SANNINI  – Mestre em Direitos Difusos e Coletivos – Especialista em Direito Público – Professor Concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo – Professor do Damásio Educacional – Escritor – Delegado de Polícia do Estado de São Paulo. 


[i] LOPES JR., Aury. Fundamentos do Processo Penal – Introdução Crítica. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 31. 

[ii] Choukr, Fauzi Hassan. Garantias Constitucionais na Investigação Criminal. ed. 3. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p.08.

[iii] Citamos o inquérito policial nesse ponto por ser o principal procedimento de investigação criminal regulamentado pelo ordenamento jurídico pátrio. 

[iv] Para um estudo mais profundo sobre a importância da investigação criminal dentro do sistema de Justiça Criminal, recomendamos nosso estudo: Funcionalismo da Investigação Criminal. Disponível: http://www.conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/53255/funcionalismo-da-investigao-criminal . Acesso em 01.04.2020. 

[v] BRASILEIRO DE LIMA, Renato. Manual de Processo Penal.p.23.

[vi] SAAD, Marta. Defesa no Inquérito Policial. Artigo disponível no livro Direito Processual de Polícia Judiciária I. Belo Horizonte: Fórum, 2020. p. 190-191. 

[vii] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil – Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento.p.43.

[viii] LESSA, Marcelo de Lima.  A Lei federal n. 13.964, de 24 de dezembro de 2019 e o advento da legítima defesa protetivaRevista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25n. 607215 fev. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/78628. Acesso em: 7 abr. 2020.

[ix] CUNHA, Rogério Sanches. Pacote Anticrime – Lei 13.964/19: Comentários às Alterações no CP, CPP e LEP. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 108. 

[x] CUNHA, Rogério Sanches. op. cit., p. 109. 

[xi] DEZEM, Guilherme Madeira. Comentário ao pacote anticrime: Lei 13.964/19. ed. 1. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 97.

[xii] Vale registrar, ademais, que a norma do artigo 14-A, do CPP, não se aplica na hipótese de “chacina” em que policiais figurem como suspeitos, haja vista que em tais casos os agentes públicos não estão no exercício da função e as mortes não ocorrem nas circunstâncias do artigo 23, do Código Penal. 

[xiii] SANNINI, Francisco. Funcionalismo da Investigação Criminal. Disponível: http://www.conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/53255/funcionalismo-da-investigao-criminal . Acesso em 01.04.2020. 

[xiv] Sobre o tema, recomentamos: CABETTE, Eduardo. SANNINI, Francisco. Tratado de Legislação Especial Criminal. Salvador: Editora Juspodivm, 2018.

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