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O que é Poder Geral de Polícia?

* Texto extraído da obra Peças e Prática da Atividade Policial.

Já é assente o poder geral de cautela do Juiz no âmbito do processo penal, na medida em que pode adotar postura de resguardo de determinado elemento probatório, com vistas a obter o resultado útil do processo.

À luz do art. 3º, do Código de Processo Penal, “a lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.”

Não obstante alguns poucos doutrinadores defendam que o Juiz no processo penal não pode adotar medidas cautelares atípicas, em razão do princípio da legalidade, não é o que prevalece.

No âmbito do processo civil o poder geral de cautela do Magistrado está disposto da seguinte forma:

Art. 297. O Juiz poderá determinar as medidas que considerar adequadas para efetivação da tutela provisória.
(…)
Art. 301. A tutela de urgência de natureza cautelar pode ser efetivada mediante arresto, sequestro, arrolamento de bens, registro de protesto contra alienação de bem e qualquer outra medida idônea para asseguração do direito.

Sobre o tema, já se manifestou o STJ, confira:

Ementa: HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. (1) IMPETRAÇÃO SUBSTITUTIVA DE RECURSO ORDINÁRIO. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA. (2) REGRESSÃO CAUTELAR. SENTENCIADO. PRÁTICA EM TESE DE NOVO DELITO. PODER GERAL DE CAUTELA. (3) AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE MANIFESTA. WRIT NÃO CONHECIDO. 1. É imperiosa a necessidade de racionalização do emprego do habeas corpus, em prestígio ao âmbito de cognição da garantia constitucional, e, em louvor à lógica do sistema recursal. In casu, foi impetrada indevidamente a ordem como substitutiva de recurso ordinário. 2. Hipótese em que não há flagrante ilegalidade a ser reconhecida. O Magistrado, diante da notícia do suposto cometimento de delito de roubo pelo paciente, pode determinar a sustação cautelar do regime aberto, com fundamento no poder geral de cautela. 3. Habeas corpus não conhecido. (HC 210998 SP 2011/0147102-2 STJ)

Desse modo, pode o Juiz, com base no poder geral de cautela, ampliar as medidas cautelares, quando devidamente fundamentadas em dados concretos e pertinentes à motivação das requeridas e deferidas, com vistas à apuração da verdade dos fatos e preservação da aplicação da lei penal.

Por oportuno, na mesma dicção lógica do poder geral de cautela do Juiz, uma vez presentes os requisitos que consubstanciariam uma prisão temporária, faltando apenas a previsão do crime listado no rol do art. 1º, da Lei 7.960/89, por exemplo, na apuração de um crime de corrupção passiva, abre-se espaço para determinação judicial de condução coercitiva, mesmo sem intimação prévia, tudo com base no poder geral de cautela (judicial, nesse caso específico por envolver inviolabilidade domiciliar).

Corroborando esse raciocínio, tem-se a opinião de VLADIMIR ARAS, em artigo publicado, confira:

Assim, quando inadequadas ou desproporcionais a prisão preventiva ou a temporária, nada obsta que a autoridade judiciária mande expedir mandados de condução coercitiva, que devem ser cumpridos por agentes policiais sem qualquer exposição pública do conduzido, para que prestem declarações à Polícia ou ao Ministério Público, imediatamente após a condução do declarante ao local do depoimento. Tal medida deve ser executada no mesmo dia da deflagração de operações policiais complexas, as chamadas megaoperações.
Em regra, para viabilizar a condução coercitiva será necessário demonstrar que estão presentes os requisitos para a decretação da prisão temporária, mas sem a limitação do rol fechado (numerus clausus) do art. 1º da Lei 7.960/89. A medida de condução debaixo de vara justifica-se em virtude da necessidade de acautelar a coleta probatória durante a deflagração de uma determinada operação policial ou permitir a conclusão de certa investigação criminal urgente.[1]

Contudo, indaga-se, tal poder de cautela seria extensível à Polícia?

Bem, considerando que todos os poderes, atribuições, prerrogativas dadas por lei a determinado titular de cargo público não é um fim em si mesmo, mas deve atender a uma finalidade pública, de melhor atendimento do interesse da sociedade.

Nesse sentido, em diversas ocasiões vislumbra-se a possibilidade e legitimação legal para o exercício do Poder Geral de Cautela por parte da Polícia.

Consubstanciado no art. 144, §§ 1º e 4º, da CF/88 e, ainda, no art. 6º, do CPP, deve a Autoridade Policial, assim que tiver notícia do fato criminoso, adotar diversas posturas, tais como providenciar para que o estado das coisas não se altere, até a chegada dos peritos criminais; apreender objetos que tiverem relação com o fato; colher todas as provas pertinentes ao esclarecimento do crime, entre outras providências.

O dispositivo legal do Código de Processo Penal, nada mais é do que a demonstração do Poder Geral de Cautela da Polícia, com vistas ao resguardo de elementos de materialidade e autoria do evento criminoso, a fim de subsidiar futura ação penal.

Se poderia invocar, ante a previsão constitucional do dever de investigar infrações penais, a teoria dos poderes implícitos, a qual estabelece que, uma vez tendo a Carta Maior previsto determinada atribuição e competência, estaria a autorizar, implicitamente, os poderes e meios necessários para consecução de seus fins. Contudo, nem sequer se faz necessário esse argumento, conforme se verá um pouco mais adiante.

A grande questão é saber se providências cautelares para o deslinde da investigação criminal se restringem ao estado flagrancial. Acreditamos que não, eis que o poder-dever de solucionar infrações penais não se exaure com a cessação do estado de flagrância.

Deste modo, a condução coercitiva de pessoas para prestar esclarecimentos na Delegacia, a apreensão de bens e objetos que indicam a existência de um crime ou a autoria dele, a requisição temporária de bens em casos de iminente perigo (art. 5º, XXV, da CF/88), a requisição de dados cadastrais, entre outras medidas necessárias, são expressão do Poder Geral de Cautela da Polícia ou Poder Geral de Polícia, como preferem alguns.

Ante a impossibilidade legal de prever todas as situações fáticas, logicamente, medidas atípicas podem ser adotadas pelo Delegado de Polícia com o intuito de acautelar provas.

Por óbvio, há limites a este poder, sobretudo os direitos e garantias individuais previstos constitucionalmente. Há determinados atos que são amparados pela reserva jurisdicional, a exemplo da inviolabilidade domiciliar. Assim, não pode a Polícia, sob o argumento do poder de cautela, invadir um domicílio para apreender um bem, por exemplo, se ausentes os requisitos previstos no art. 5º, XI, da CF/88; nem tampouco adentrar uma residência sem ordem judicial para conduzir coercitivamente alguém.

Observados os direitos e garantias individuais, há se reconhecer o Poder Geral de Cautela da Polícia ou Poder Geral de Polícia. Nesse sentido, mesmo sem utilizar essas nomenclaturas, vem decidindo as cortes superiores, a exemplo da decisão a seguir:

HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. CONDUÇÃO DO INVESTIGADO À AUTORIDADE POLICIAL PARA ESCLARECIMENTOS. POSSIBILIDADE. INTELIGÊNCIA DO ART. 144, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E DO ART. 6º DO CPP. DESNECESSIDADE DE MANDADO DE PRISÃO OU DE ESTADO DE FLAGRÂNCIA. DESNECESSIDADE DE INVOCAÇÃO DA TEORIA OU DOUTRINA DOS PODERES IMPLÍCITOS. PRISÃO CAUTELAR DECRETADA POR DECISÃO JUDICIAL, APÓS A CONFISSÃO INFORMAL E O INTERROGATÓRIO DO INDICIADO. LEGITIMIDADE. OBSERVÂNCIA DA CLÁUSULA CONSTITUCIONAL DA RESERVA DE JURISDIÇÃO. USO DE ALGEMAS DEVIDAMENTE JUSTIFICADO. CONDENAÇÃO BASEADA EM PROVAS IDÔNEAS E SUFICIENTES. NULIDADE PROCESSUAIS NÃO VERIFICADAS. LEGITIMIDADE DOS FUNDAMENTOS DA PRISÃO PREVENTIVA. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA E CONVENIÊNCIA DA INSTRUÇÃO CRIMINAL. ORDEM DENEGADA. I – A própria Constituição Federal assegura, em seu art. 144, § 4º, às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais. II – O art. 6º do Código de Processo Penal, por sua vez, estabelece as providências que devem ser tomadas pela Autoridade Policial quando tiver conhecimento da ocorrência de um delito, todas dispostas nos incisos II a VI. III – Legitimidade dos agentes policiais, sob o comando da Autoridade Policial competente (art. 4º do CPP), para tomar todas as providências necessárias à elucidação de um delito, incluindo-se aí a condução de pessoas para prestar esclarecimentos, resguardadas as garantias legais e constitucionais dos conduzidos. IV – Desnecessidade de invocação da chamada teoria ou doutrina dos poderes implícitos, construída pela Suprema Corte norte-americana e incorporada ao nosso ordenamento jurídico, uma vez que há previsão expressa, na Constituição e no Código de Processo Penal, que dá poderes à polícia civil para investigar a prática de eventuais infrações penais, bem como para exercer as funções de polícia judiciária. V – A custódia do paciente ocorreu por decisão judicial fundamentada, depois de ele confessar o crime e de ser interrogado pela Autoridade Policial, não havendo, assim, qualquer ofensa à clausula constitucional da reserva de jurisdição que deve estar presente nas hipóteses dos incisos LXI e LXII do art. 5º da Constituição Federal. VI – O uso de algemas foi devidamente justificado pelas circunstâncias que envolveram o caso, diante da possibilidade de o paciente atentar contra a própria integridade física ou de terceiros. […]. (STF, HC 107644/SP, relator min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, julgado em 06/09/2011, publicado em 18-10-2011). (grifo nosso).

Destarte, seja por meio de expressão legal, seja por meio da jurisprudência pátria, ou até mesmo em razão da adoção da Teoria dos Poderes Implícitos, há se reconhecer o Poder Geral de Cautela da Polícia, consistente na atuação direta da Autoridade de Polícia Judiciária, ou por meio de seus Agentes.

Poder de Requisição do Delegado de Polícia

Na esteira do que já foi mencionado durante nossas considerações sobre o Poder Geral de Polícia, aliás, em complementação às ideias trazidas à discussão, consiste ainda o Poder de Requisição do Delegado de Polícia, consubstanciado em diversas passagens do Código de Processo Penal, leis esparsas e, sobretudo, na Lei n.º 12.830/13.

Importante inicialmente distinguir requisição, ordem e solicitação. De acordo com a doutrina pátria, por solicitação entende-se o mero pedido, sem força coercitiva, ou seja, algum pleito com possibilidade ou não de ser atendido, uma vez que não há mecanismo de se forçar o cumprimento.

Já a ordem parte do Poder Hierárquico, sendo impróprio dizer, por exemplo, que o Juiz ou MP dão ordem para instauração de inquérito policial, pois não têm ascendência funcional sobre o Delegado de Polícia. Da mesma forma, o Delegado de Polícia não dá ordens ao particular e sim requisita o que é necessário para o bom andamento da investigação. Assim é o entendimento de NUCCI (2016, p. 70).

Por outro lado, a requisição, em razão de encontrar supedâneo em lei, atende ao comando constitucional previsto no inciso II, do art. 5º, quando assevera que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Assim, a requisição não é mera solicitação, mas determinação fundamentada e acurada em poder estabelecido por lei. Sendo assim, tem força coercitiva de cumprimento, podendo caracterizar o crime de desobediência o não atendimento, ou outro delito específico, a exemplo do crime previsto no art. 21, da Lei n.º 12.850-13 ou art. 319 do CPB – prevaricação, se demonstrada a finalidade de satisfazer interesse ou sentimento pessoal.

Como visto alhures, em virtude do Poder Geral de Polícia dado ao Delegado de Polícia para apurar infrações penais (art. 144, §§ 1º e 4º, da CF e ainda art. 6º, do CPP, entre outros), há se reconhecer também o consequente poder de requisição, ou seja, poder de determinar o envio de informações, não amparadas pela reserva jurisdicional, relativas a investigações em andamento.

Cumpre esclarecer de maneira perfunctória, na medida em que será esclarecido de modo mais detido no decorrer desta obra, que informações sobre dados estáticos, compreendidos como aqueles que não mudam ou se modificam raramente, como nomes, endereços, números de telefones (sem histórico de chamadas), número de Cadastro de Pessoas Físicas – CPF, número de Registro Geral – RG, número de conta bancária (sem histórico de movimentações financeiras), prontuário médico etc., são dados passíveis de ser obtidos diretamente pelo Delegado de Polícia por requisição direta, sem intervenção do Poder Judiciário. Não representam comunicação de dados (art. 5º, XII, da CF/88), mas sim meros dados de identificação.

O nosso entendimento é no sentido de que apenas dados amparados pela chamada reserva jurisdicional, em proteção à intimidade, não podem ser obtidos por meio de requisição direta.

Da mesma maneira está a determinação para realização de exame pericial (art. 6º, VII, art. 158, 159 e 178 do CPP) e, ainda, nomeação de perito ad hoc, quando não há peritos oficiais na localidade, circunstância bastante comum em cidades do interior dos Estados, em virtude da precariedade da estrutura estatal.

É de notar que há casos em que a lei prevê de forma típica situações em que o Delegado de Polícia pode efetuar requisições (art. 6º, VII, art. 174, III, art. 221, § 2º, do CPP, art. 17-B da Lei n.º 9.613/98 e art. 15 da Lei n.º 12.850/13), entretanto, ante a impossibilidade de estabelecer legalmente todas as situações fáticas, restam as medidas atípicas de requisição, consubstanciadas na necessidade do caso concreto.

Desse modo, o Poder de Requisição do Delegado de Polícia, mesmo para medidas atípicas, encontra respaldo no § 2º, da Lei 12.830/13, in verbis:

Art. 2.o As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo Delegado de Polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.

  • 1o Ao Delegado de Polícia, na qualidade de Autoridade Policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.
  • 2o Durante a investigação criminal, cabe ao Delegado de Polícia a requisição de perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos.

Apenas a título de exemplo, citam-se algumas medidas atípicas de requisição possíveis:

  • Requisição de prontuário médico;
  • Requisição de imagens de circuito interno ou externo de filmagens de propriedades privadas ou públicas;
  • Requisição de dados constantes em Bancos de Dados de caráter público;
  • Requisição de documentos de órgãos públicos, não amparados por sigilo legal (Lei n.º 12.527/11);
  • Obtenção de dados cadastrais dos usuários de determinados IPs (Internet Protocol), que digam respeito ao endereço e propriedade do computador (§ 3º do art. 10 da Lei n.º 12.695/14);

O poder requisitório do Delegado de Polícia, destarte, se estende a todos os dados não acobertados pela reserva jurisdicional, obviamente, no interesse da investigação. De outra sorte, consiste em determinação com fundamento legal, cuja desobediência pode caracterizar crime.

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Sobre o autor: Paulo Reyner é atualmente Delegado de Polícia Civil e ex-Policial Militar. Graduado em Direito pela Universidade do Distrito Federal – UDF, Especialista em Ciências Criminais e Especialista em Políticas e Gestão em Segurança Pública.


Conheça a obra Peças e Prática da Atividade Policial.

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[1] ARAS. Vladimir. Debaixo de vara:a condução coercitiva como cautelar autônoma. Disponível em: <https://blogdovladimir.wordpress.com/2013/07/16/a-conducao-coercitiva-como-cautelar-pessoal-autonoma/>. Acesso em 23 de set. 2016.
* MOUSINHO. Paulo Reyner Camargo. Peças e Prática da Atividade Policial. Editora Clube de Autores,  Macapá/AP, 2017.
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