Medidas sanitárias e suas implicações penais. Uma análise acerca da subsunção dos tipos penais às condutas perpetradas durante a pandemia – Justiça & Polícia

Medidas sanitárias e suas implicações penais. Uma análise acerca da subsunção dos tipos penais às condutas perpetradas durante a pandemia

Por Abraão Trani de Almeida

Que tempos insólitos estamos vivendo. A moléstia que nos assola mudou, e talvez venha a mudar por muitos anos, a forma como nos relacionamos. A perspectiva do cenário hodierno fez com que diversos aspectos da sociedade tivessem que ser reanalisados, isso não foi diferente para os aplicadores da legislação penal pátria.

O advento da pandemia e a necessidade de controlar ainda mais a conduta dos cidadãos trouxeram à tona diversos estudos acerca da correta subsunção dos tipos penais em vigência.

As linhas que se seguem não têm como objetivo dissertar sobre a eficiência das decisões decretadas ou a constitucionalidade destas, mas sim acerca da correta aplicação dos tipos previstos ao comportamento praticado, auxiliando dessa forma seus aplicadores.

As discussões circundam basicamente quatro tipos penais: o crime intitulado “perigo de contágio de moléstia grave” (art. 131 do Código Penal Brasileiro), o delito de “epidemia” (art. 267 do CPB), a “infração de medida sanitária preventiva” (art. 268 do CPB) e o crime de desobediência (art. 330). 

O artigo 131 do Código Penal Brasileiro prevê o crime de “perigo de contágio de moléstia grave”. Vejamos:

Art. 131 – Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio:

Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.

Faz-se necessário atentar para o fato de que a subsunção do tipo penal acima somente ocorre quando o dolo do agente for transmitir a moléstia grave de que sabe estar acometido, sendo a ciência de sua moléstia e o dolo de agir os cernes da análise.

O resultado transmissão é dispensável para a consumação do crime e a intenção de transmitir moléstia que não possui torna o crime impossível. 

Após a condução do infrator e confirmado seu dolo, haverá a lavratura do auto de prisão em flagrante com arbitramento de fiança pelo Delegado de Polícia. 

O delito de causar epidemia é o mais grave dentre os susoditos, prevendo sua forma simples a pena máxima de quinze anos. O resultado morte duplica a pena.

Art. 267 – Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos:

Pena – reclusão, de dez a quinze anos. (Redação dada pela Lei nº 8.072, de 25.7.1990)

§ 1º – Se do fato resulta morte, a pena é aplicada em dobro.

§ 2º – No caso de culpa, a pena é de detenção, de um a dois anos, ou, se resulta morte, de dois a quatro anos.

Guilherme de Souza Nucci aduz que a incorrência de tipo penal tão grave somente deve acontecer em locais onde não haja epidemia ou esta tenha sido erradicada e a transmissão efetiva da epidemia é imprescindível à consumação do delito[i].

Nesse caso, o aplicador da lei deve analisar, em conjunto com a ciência da patologia por parte do infrator, a conjuntura epidemiológica da região e como se deu seu surgimento (o que torna tal crime de difícil aplicação).

O perpetrador, ciente de sua patologia, que, possuindo a intenção ou assumindo o risco, com sua conduta dá causa à epidemia em região não assolada pela moléstia comete o crime do caput ou parágrafo primeiro, sendo este último caso o resultado morte advenha.

Não tendo ciência da patologia, mas sequer se resguardando através das medidas estabelecidas, age de forma imprudente ou negligente, quando então a incorrência se dará no parágrafo segundo, sendo a modalidade culposa qualificada também pelo resultado morte.

O tipo penal que mais vem incorrendo com o recrudescimento das medidas de controle é, de longe, o previsto no art. 268 do CPB.

Art. 268 – Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:

Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa.

Parágrafo único – A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.

Norma penal em branco, o tipo necessita de complemento para sua aplicação. O complemento pode ser emitido por autoridades estaduais ou municipais, prescindindo da atuação do ente federal.

O infrator, nessa hipótese, não tem ciência de ser eventual portador da condição patológica, não possuindo o animus de transmissão, contudo sua conduta volitiva é desrespeitar determinada medida sanitária decretada.

Diante do menor potencial ofensivo da norma criminal, haverá a incidência da lei 9.099/95 e a lavratura de termo circunstanciado de ocorrência, procedimento menos complexo que o auto de prisão em flagrante.

Ser o perpetrador funcionário da saúde pública, médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro é causa de aumento de pena.

O crime subsiste mesmo diante do afastamento da medida imposta, bastando que tenha sido praticado durante sua vigência. 

À guisa de esclarecimento, o crime de desobediência, por sua vez, deve ser aplicado de forma subsidiária, senão vejamos:

Art. 330 – Desobedecer a ordem legal de funcionário público:

Pena – detenção, de quinze dias a seis meses, e multa.

Ou seja, quando a ordem legal emanada por autoridade munida de poder de polícia não for em virtude de medida sanitária decretada, seu descumprimento acarretará no crime do artigo 330 (a exemplo do motorista que não para seu veículo diante de ordem emanada por guarda de trânsito). 

Diversas controvérsias deverão surgir nos dias vindouros, contudo os tipos penais supracitados açambarcam a maioria das condutas perpetradas nos incomuns dias que vivemos. 

A fim de não tornar o presente artigo deveras extenso, não foram abordados temas como a venda de medicamentos “milagrosos”, a prática abusiva de comerciantes mal-intencionados, a constitucionalidade formal das medidas decretadas, dentre outros, o que demonstra o farto suporte fático sobre cuja análise podemos ainda nos debruçar.

Por conseguinte, ante o exposto, como defensor do caráter de ultima ratio da lei penal, saliento que a conscientização da comunidade e seu comprometimento junto às determinações do poder público serão sempre as melhores formas de combater o mal invisível que nos aflige. 

Por dias melhores.


[i] https://guilhermedesouzanucci.jusbrasil.com.br/artigos/823696891/a-pandemia-do-coronavirus-e-a-aplicacao-da-lei-penal

Abraão Trani de Almeida é Delegado de Polícia Civil do Estado do Amapá desde 2010. Especialista em segurança pública pela AVM faculdade integrada.


[i] https://guilhermedesouzanucci.jusbrasil.com.br/artigos/823696891/a-pandemia-do-coronavirus-e-a-aplicacao-da-lei-penal

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