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Direito Penal do Absurdo: Você sabia que fabricar açúcar em casa é crime?

Se não for o país mais profícuo em proliferação legislativa penal do mundo, certamente o Brasil está entre os primeiros da lista. Muito embora tenha havido um amadurecimento doutrinário em relação a uma série de princípios norteadores do direito penal, ao que tudo indica o Poder Legislativo de outrora, inclusive o atual, não acompanhou a evolução dos princípios penais.

Princípios tais como intervenção mínima, fragmentariedade, subsidiariedade e adequação social passam longe da mente do legislador brasileiro, sobretudo na hora de confeccionar legislação casuística, inflando o sistema punitivo penal com tipos cada vez mais absurdos.

Apenas a título de exemplo, pois é possível que existam outros tantos tipos absurdos, listamos abaixo alguns bastante curiosos que, possivelmente, nem policiais, nem delegados, nem promotores e nem mesmo juízes saibam que existam.

Vamos iniciar a série de bizarrice legislativo-penal:

  1. FABRICAR AÇÚCAR EM CASA É CRIME

Conforme prevê o Decreto-Lei 16/66, recepcionado com status de Lei Ordinária (alguns preferem eficácia), aquele que fabricar açúcar clandestinamente, assim como quem armazenar o produto entre outras condutas mais, incorre na pena de detenção de 06 (seis) meses a 02 (dois) anos. Não acredita, então, totalmente em vigência, com acesso pelo site do Planalto, in verbis:

Art. 1º Constitui crime:

a) Produzir, manter em estoque, ou dar saída a açúcar fora ou acima da cota autorizada no Plano Anual de Safra do Instituto do Açúcar e do Álcool;

(b) Produzir açúcar em fábrica clandestina, conforme previsto nos artigos 22 e 30, do Decreto-Lei número 1.831, de 4 de dezembro de 1939, bem como dar saída ou armazenar o produto assim irregularmente obtido;    

c) Receber, dar saída, ou manter em estoque, açúcar desacompanhado da nota de remessa ou de entrega, conforme previsto na alínea b , do Artigo 60, do Decreto-Lei nº 1.831, de 4 de dezembro de 1939, e no 43, da Lei nº 4.870, de 1º de dezembro de 1965;

(…)

Pena – Detenção de seis (6) meses a dois (2) anos.

Parágrafo único. Em igual pena incorrerá todo aquêle que, de qualquer modo, concorrer para o crime previsto neste artigo. 

 O mais absurdo está nas considerações do Decreto Lei, nosso legislador ainda foi sábio em asseverar: “Considerando que a produção clandestina de açúcar e álcool, seu transporte e sua comercialização envolvem aspectos que dizem respeito à Segurança Nacional (…)”. Dispensa comentários.

  1. MALTRATAR PLANTA, CULPOSAMENTE, É CRIME!

Ninguém duvida da necessidade da legislação ambiental, a fim de assegurar o direito de terceira dimensão na proteção do meio ambiente para a presente e futura gerações. Alguns doutrinadores advogam, entretanto, que caberia a outros ramos do direito a proteção ambiental, aplicando-se multas administrativas, determinação de encerramento de atividades, entre outras sanções que, sem as garantais inerentes ao direito penal, possibilitariam uma punição mais eficaz.

Contudo, a dita espiritualização do direito penal [i] tem ganhado cada vez mais força, inclusive com tipos muito inadequados, pra dizer o mínimo. Um deles é o descrito no art. 49, parágrafo único da Lei 9.605/98, que dispõe:

Art. 49. Destruir, danificar, lesar ou maltratar, por qualquer modo ou meio, plantas de ornamentação de logradouros públicos ou em propriedade privada alheia:

Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.

Parágrafo único. No crime culposo, a pena é de um a seis meses, ou multa.

Não bastasse o absurdo do caput, o parágrafo único ainda tipifica a modalidade culposa do delito. Assim, caso você esteja andado em uma praça e, por descuido, tropece e danifique ou maltrate uma planta de jardim de um logradouro público ou propriedade particular, cometeu crime ambiental, sujeito a uma pena de um a seis meses ou multa! Não há potencialidade de dano ambiental em tal conduta, mesmo assim após o advento da Constituição de 1988, o legislador insiste em nos presentear com tipos dessa natureza.

Calma, ainda tem mais.

  1. EMISSÃO IRREGULAR DE DEPÓSITO OU WARRANT

Bem, necessário primeiramente explicar o que vem a ser warrant. Trata-se de um título de crédito “emitido em conjunto com o conhecimento de depósito, e tem por objetivo eventuais operações de crédito cuja garantia seja o penhor sobre as mercadorias depositadas no armazém-geral. O crime de emissão irregular de conhecimento de depósito ou warrant está concretizado em uma norma penal em branco.”[ii] A norma penal é complementada pelo Decreto 1.102/1902 (em vigência com exatos 114 anos), que no art. 15 estabelece vários requisitos, dentre eles o nome, a profissão e o domicílio do depositante.

Pois bem, dito isso, é necessário que você saiba, embora não muito comum a própria emissão dessa espécie de título de crédito, se irregular, que pode ser a ausência de qualquer dos requisitos, configura crime, previsto no  do Código Penal Brasileiro:

Emissão irregular de conhecimento de depósito ou “warrant”

Art. 178 – Emitir conhecimento de depósito ou warrant, em desacordo com disposição legal:

Pena – reclusão, de um a quatro anos e multa.

 

  1. VENDER REVISTA PORNOGRÁFICA, TRANSMITIR FILME COM CENAS DE SEXO OU PEÇA TEATRAL COM CONTEÚDO OBSCENO É CRIME

Escrito ou objeto obsceno

Assim prevê o tipo penal em comento, tipificado no C.P.B.:

Art. 234 – Fazer, importar, exportar, adquirir ou ter sob sua guarda, para fim de comércio, de distribuição ou de exposição pública, escrito, desenho, pintura, estampa ou qualquer objeto obsceno.

Pena – detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.

Parágrafo único – Incorre na mesma pena quem:

I – vende, distribui ou expõe à venda ou ao público qualquer dos objetos referidos neste artigo;

II – realiza, em lugar público ou acessível ao público, representação teatral, ou exibição cinematográfica de caráter obsceno, ou qualquer outro espetáculo, que tenha o mesmo caráter;

III – realiza, em lugar público ou acessível ao público, ou pelo rádio, audição ou recitação de caráter obsceno.

Isso mesmo, todo comerciante, jornaleiro, o senhor da banca da esquina que adquire, tem sob sua guarda escrito, desenho, pintura ou qualquer outro objeto obsceno, está cometendo crime. Sex shop nem pensar! Então, nada de vender revistas pornográficas, ou sensuais. Não satisfeito, o legislador também tipificou como crime a representação teatral ou exibição cinematográfica de caráter obsceno. O que diria o legislador de 1941 sobre a peça teatral denominada Macaquinhos?

Sobre o crime em questão, nos diz o célebre doutrinador Cleber Masson [iii]:

O crime de escrito ou objeto obsceno é figura típica ultrapassada e em total desuso, de parte da população e também do Estado. Exemplificativamente, revistas com capas pornográficas, jornais com fotos eróticas e filmes com conotação sexual são rotineiramente exibidos em bancas e lojas. É sabido que os costumes e a falta de utilização de uma lei não autorizam sua revogação. O legislador já deveria ter observado o pensamento da coletividade no tocante a crimes desta natureza, mas, enquanto não age, resta ao intérprete invocar o princípio da adequação social, concluindo pela ausência de tipicidade material dos comportamentos incriminados.

  1. CONTRAVENÇÕES PENAIS

Parte considerável da doutrina entende que as contravenções penais, também chamadas de crimes liliputianos[iv] ou crimes anão, são inaplicáveis, eis que por definição o direito penal é a ultima ratio, não devendo se preocupar com questões de somenos importância. No entanto, em diversas ocasiões o Supremo Tribunal Federal tem se manifestado pela constitucionalidade de vários tipos previstos na legislação de contravenções, desse modo, o Decreto-Lei 3.688/41, é plenamente aplicável nos dias atuais, muito embora alguns tipos tenham sido considerados não recepcionados pela ordem constitucional vigente.

Dentre os que ainda estão em vigência, destacamos os seguintes:

Art. 43. Recusar-se a receber, pelo seu valor, moeda de curso legal no país:

Pena – multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.

Taí um tipo penal difícil de se ver configurado, imagine algum empresário se recusando a aceitar dinheiro de alguém. Totalmente desnecessária essa contravenção, aliás como tantas outras. Caso a motivação seja discriminação em razão de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, plenamente aplicável o art. 5º da Lei 7.716/89.[vi]

EMBRIAGUEZ

Art. 62. Apresentar-se publicamente em estado de embriaguez, de modo que cause escândalo ou ponha em perigo a segurança própria ou alheia:

        Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.

        Parágrafo único. Se habitual a embriaguez, o contraventor é internado em casa de custódia e tratamento.

        Art. 63. Servir bebidas alcoólicas:

        I – a menor de dezoito anos;          (Revogado pela Lei nº 13.106, de 2015)

        II – a quem se acha em estado de embriaguez;

        III – a pessoa que o agente sabe sofrer das faculdades mentais;

        IV – a pessoa que o agente sabe estar judicialmente proibida de frequentar lugares onde se consome bebida de tal natureza:

        Pena – prisão simples, de dois meses a um ano, ou multa, de quinhentos mil réis a cinco contos de réis.

 

Considerando o tipo acima, todo o alcoólatra que sai de casa está cometendo contravenção penal. Mais ainda, o garçom que serve bebida alcoólica a quem esteja embriagado, o que não é muito raro de ocorrer, também é contraventor.

Dissertando sobre a contravenção penal em comento, Nucci assevera que não é compatível com o princípio da intervenção mínima a pretensão de punir a pessoa que se embriaga e, nesse estado, o que não é muito estranho, pois está com a consciência afetada, cause escândalo. Bastaria retirar o sujeito do local, seja público ou privado. (…) Por outro lado, pretender punir aquele que se embriaga porque coloca em risco a própria segurança é o ápice do intervencionismo do Estado. Se não se pune a autolesão, nem a tentativa de suicídio, por que haveria de punir o ébrio que atravessa, por exemplo, uma rua movimentada, sem as cautelas devidas, correndo o risco de ser atropelado? [vii]

Pela simples leitura das contravenções e crimes supracitados, é notória a defasagem legislativa do Direito Penal. Muito embora totalmente inaplicáveis, até mesmo porque em certas ocasiões nem as figuras responsáveis pela persecução penal sabem  da existência ou que ainda estejam em vigência, essas infrações penais só trazem insegurança ao sistema penal. Confundem a população sobre o que é permitido ou proibido, violam o bom senso e o razoável, advém de irresponsabilidade legislativa, seja na confecção do tipo, seja por inércia em sua revogação.

Ademais, enfraquecem o Direito Penal, que deveria punir os crimes mais graves, que atingem os bens mais relevantes para o ser humano. A inflação legislativa faz com que o direito criminal torne-se supérfluo, digno de piada. O cidadão fica exposto às vicissitudes do Estado.

Necessário ressaltar que de acordo com o princípio da continuidade das leis, os costumes desuetudos [viii] não têm o condão de revogar leis vigentes. Assim já decidiu vem entendendo a jurisprudência pátria. Podem-se citar pelo menos duas situações que indicam a posição dos tribunais sobre o tema, uma delas a respeito da contravenção penal de jogo do bicho (a exemplo do recente RHC 68782), e outra em relação à comercialização de CDS e DVDS pirateados. Importante ressaltar que nesse último caso foi editada a súmula nº 502/STJ, reafirmando a tipicidade material da conduta descrita no At. 184, § 2º do C.P.B., corriqueiramente aceita pela população.

Há ressalta-se também a íntima relação desses tipos absurdos com o princípio da adequação social, na medida em que são socialmente aceitos. Parte da doutrina entende que apesar de não revogar lei penal incriminadora, os costumes podem conduzir a aplicação de atenuante genérica inominada. Sem afastar, por óbvio, a possibilidade de eventual erro de proibição por desconhecimento da ilicitude do que se pratica.

Muito embora de difícil incidência prática, os tipos comentados estão em vigência. Lembra-se ainda que para que alguma conduta se torne típica no Brasil, é preciso apenas que seja inserida em Lei Ordinária e não é raro que leis que tratam das mais variadas matérias inserirem crimes em algum artigo do seu corpo. Sempre há aquele Capítulo “Dos Crimes”, que parece ter virado parte obrigatória em toda lei. [ix]

Isso traz insegurança legislativa, o cidadão não tem a mínima condição de saber da existência dessas leis, quanto menos de compreender seu conteúdo. As normas devem ser conhecidas para serem seguidas, premissa lógica que se aplica ao Direito Penal.

Desse modo, bastante razoável a ideia de Reserva de Código, onde todo e qualquer tipo penal deveria ser colocado no Código Penal Brasileiro, assim, haveria um local certo onde encontrar crimes, não essa mixórdia de tipificação penal. O cidadão e os aplicadores do direito saberiam, de fato, o que é típico e o que é atípico.

Os cidadãos têm o direito de saber se estão incidindo em alguma figura típica, portanto, urge que o legislador revogue ou o Supremo Tribunal Federal declare não recepcionados esses e outros tantos tipos penais provenientes do Direito Penal do Absurdo, compreendido como aquelas infrações penais em total desuso, incongruentes, incoerentes, desproporcionais e fruto de casuísmos legislativos.

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Sobre o autor: Paulo Reyner é  atualmente Delegado de Polícia Civil e ex-Policial Militar. Graduado em Direito pela Universidade do Distrito Federal – UDF, Especialista em Ciências Criminais e Especialista em Políticas e Gestão em Segurança Pública.

 

 

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[i] Espiritualização do direito penal: De acordo com parte da doutrina penalista, como surgimento e reconhecimento de diversos bens jurídicos supraindividuais, difusos e coletivos, também houve a necessidade buscar efetiva proteção a estes bens. Assim, além dos bens individuais, tais como a vida, o patrimônio das pessoas, o direito penal está passando, cada vez mais, a prever crimes de perigo, especialmente de perigo abstrato, em que a lei presume de forma absoluta a situação de perigo ao bem jurídico penalmente tutelado. A esse fenômeno chama-se espiritualização do direito penal.

[ii][ii] Código Penal comentado / Cleber Masson. 2. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2014. P. 809.

[iii] Código Penal comentado / Cleber Masson. 2. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2014. P. 946

[iv] Crime Liliputiano: É o nome doutrinário reservado às contravenções penais. Esta terminologia tem origem no livro Viagens de Gulliver, do inglês Jonathan Swift, no qual o personagem principal viaja por um mundo imaginário, e em sua primeira jornada vai a Liliput, terra em que os habitantes medem apenas 15 (quinze) centímetros de altura. (Masson, 2014, ob. Cit item iii, p. 118)

[v] Inserir jurisprudência

[vi] Art. 5º. Recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-lhe a servir, atender ou receber cliente ou comprador. Pena – reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos.

[vii] NUCCI, Guilherme de Souza, Leis penais e processuais penais comentadas. 4. Ed. Rev. atual. Ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.

[viii]Costume desuetudo, mais comumente conhecido como costume contra legem, é aquele que vai de encontro à lei vigente.

[ix] Como exemplo, cita-se art. 192 da Lei 9.279/96; Art. 14 da Lei 9.434/97.

 

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