Desburocratização ou reburocratização? – Justiça & Polícia

Desburocratização ou reburocratização?

Por Esclepiades de Oliveira Neto

Revista Justiça & Polícia – ISSN 2675-6943

1 – INTRODUÇÃO

            A Lei 13.726[i], de 8 de outubro 2018, comumente denominada “Lei da Desburocratização”[ii],  ingressou no ordenamento jurídico com o intuito de racionalizar atos e procedimentos administrativos dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, instituindo também o Selo de Desburocratização e Simplificação no serviço público.

            Tal norma suscitou uma necessidade de supressão ou simplificação de formalidades ou exigências tidas como desnecessárias ou superpostas[iii], cujo custo econômico ou social, tanto para o erário como para o cidadão, seja superior ao eventual risco de fraude, no contexto dos atos e procedimentos administrativos dos Poderes da União, Estados, Distrito Federal e dos Municípios.

            Observa-se, a partir da análise do texto de lei acima transcrito, a mensagem de que a burocracia representaria o grande mal da gestão pública. Tal reflexão torna necessária uma breve análise conceitual do modelo de gestão burocrática e suas implicações nos modelos de gestão pública sobretudo no Brasil.

2 – ALGUM ALINHAMENTO TEÓRICO SOBRE BUROCRACIA

            Analisando a teoria burocrática de Weber, Chiavenatto[iv] relaciona as seguintes características principais: a) caráter legal de normas e regulamentos; b) caráter formal das comunicações; c) caráter racional e divisão de trabalho; d) impessoalidade nas relações; e) hierarquia de autoridade; f) rotina e procedimentos padronizados; g) competência técnica e meritocracia; h) especialização da administração; i) profissionalização dos participantes; j) completa previsibilidade do funcionamento.

            Ainda sobre tal pensamento, cabe a análise crítica de Faria e Meneghetti:[v]

Segundo Weber (1982, p. 229), a burocracia moderna funciona sob formas específicas. A burocracia está sob a regência de áreas de jurisdição fixas e oficiais, ordenadas por leis e normas administrativas. Ela estabelece relações de autoridade, delimitada por normas relativas aos meios de coerção e de consenso. Uma relação hierárquica se estabelece, definindo postos e níveis de autoridades, além de um sistema de mando e subordinação com gerência das atividades e tarefas delegadas por autoridade. Nesse contexto, a administração é formalizada por meio de documentos, que acabam por regular a conduta e as atividades das pessoas. O treinamento é fundamental nas burocracias especializadas devido às especificações das atividades e dos trabalhos. O treinamento especializado volta-se para generalizar o cargo e transformá-lo em profissão. As atividades e tarefas de um trabalho transformado em profissão, que podem ser apreendidas por qualquer trabalhador, são descritas e delimitadas pela criação de cargos mais ou menos estáveis. A ocupação de um cargo configura uma profissão de ordem impessoal e transitória. A posição pessoal de um funcionário é desfrutada e estimada em um contexto social específico, sempre em comparação aos demais funcionários e em relação à estrutura social. Os funcionários recebem salários (compensação pecuniária) regulares, criando-se certa segurança social em troca das atividades exercidas por ele. Esse salário é definido pela tarefa realizada, por suas particularidades e pela posição hierárquica do funcionário. A burocracia cria uma carreira dentro da ordem hierárquica estabelecida.

Para Weber (1974), o cumprimento dos objetivos efetiva-se por tarefas definidas, que devem ser calculadas e precisam ser realizadas independentemente das características das pessoas, ou seja, o cumprimento das mesmas deve se revestir de impessoalidade.

            Neste sentido, são observados vários conceitos da burocracia weberiana que sugerem processos comprometidos com valores tais como legalidade dos procedimentos, racionalidade do trabalho, impessoalidade, meritocracia, profissionalização e planejamento e, por conseguinte, contemplam conceitos jurídicos similares aos previstos no art. 37 da Constituição Federal[vi].

            Contudo, a percepção da burocracia, atualmente, encontra-se associada à morosidade e à improbidade, o que justificaria, por este viés, a denominação “Lei da Desburocratização” como nome de batismo da Lei 13.726/2018, no sentido de que tal norma buscaria emprestar mais velocidade, economia e austeridade à gestão pública brasileira.

            Isto se deve ao que pode ser denominado como subversão histórica do conceito de burocracia, ou seja, um conjunto de práticas deletérias que transformaram o modelo weberiano como algo associado a atos e procedimentos administrativos com formalidades ou exigências desnecessárias/superpostas, econômica ou socialmente custosas, que geram indicadores de ineficiência, ineficácia e não efetividade na prestação dos serviços públicos.

            Assim, cabível pontuar a seguinte reflexão: a busca pela real aplicação dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência no serviço público passaria pela concepção de desburocratização ou seria apenas um resgate histórico daquilo que foi preconizado por Weber, o que poderia ser chamado de reburocratização?

            E mais, a crítica sobre as práticas burocráticas é um problema ligado à sua formulação teórica (distorção epistemológica) ou às suas bases éticas (distorção teleológica)?

3 – DO AUTORITARISMO BUROCRÁTICO À BUROCRACIA DEMOCRÁTICA

            Antes da instituição da Nova República, o Brasil experimentava tempos ditatoriais, sendo intuitivo deduzir que neste período havia o estabelecimento de um Estado Burocrático Autoritário, expressão cunhada por Guilhermo O’Donnell, como assinalado por Belieiro Junior e Livacic[vii]:

As rupturas democráticas das décadas de 60 e 70 produziram uma nova ordem política, econômica e social nos países da América Latina. Na construção teórica de O`Donnell, o Estado burocrático-autoritário é um conceito que tem por objetivo explicar a ruptura institucional das democracias nas economias periféricas. Embora trate do caso latino-americano, sua abordagem incluiu outros países periféricos, como Grécia, Espanha e outros3. O conceito de Estado B.A. estabelece os pilares explicativos de um novo tipo de dominação autoritária na região, cujo pressuposto se dá a partir da definição de características histórico-estruturais, determinadas por padrões comuns que pavimentam o caminho para o autoritarismo. Esse enfoque estruturalista explica que as variáveis econômicas determinam a ordem política na América Latina.  

            A tese do autoritarismo burocrático, no contexto brasileiro, seguiria as seguintes características propostas por O’Donnell[viii]:  a) altos cargos governamentais ocupados habitualmente por pessoas com exitosas carreiras em organizações complexas (Forças Armadas, burocracia estatal e grandes companhias privadas); b) exclusão da participação política; c) exclusão econômica; d) a despolitização dos assuntos de interesse da nação, reduzidos a assuntos “técnicos” que devem ser resolvidos pelas altas esferas.

            Com a Nova República, por sua vez, é de se falar em burocracia democrática, na qual diversos princípios foram sendo agregados como relevantes ao serviço público, tais como a participação, a inclusão social, a publicidade e a eficiência, dentre outros.

            Contudo, se por um lado o sistema democrático implementado pela Nova República amenizou o modelo burocrático tecnocrático de inspiração autoritária do período ditatorial – instituindo, por exemplo, maior publicidade, participação e pluralidade na gestão pública – por outro lado vem se identificando uma tendência crítica de considerar desvirtuamentos em tal modelo, relacionados à ineficiência, morosidade, excessiva onerosidade e predisposição para práticas violadoras da moralidade e da impessoalidade.

            São estas críticas que aparentam justificar a criação da Lei 13.726/2018, relacionadas à simplificação de procedimentos (art. 3º), criação de grupos setoriais de trabalho para eliminar excessos burocráticos (art. 5º), instituição do Selo de Desburocratização e Simplificação (art. 7º).

            Para além desta perspectiva de caça às exigências descabidas/exageradas, procedimentos desnecessários/redundantes, bem como ao excesso de burocracia, é necessário pensar em um modelo de gestão pública que busque a sinergia entre a eficiência e a cidadania, tal como propõem escolas contemporâneas de gestão como a nova gestão pública[ix] e novo serviço público[x].

4 – CONCLUSÃO

            O modelo burocrático, com predominância conceitual tanto no período antecedente à redemocratização quanto na Nova República, possui características bem definidas, como delineado por Weber. Entretanto, sua prática sofreu alterações históricas, variando da tecnocracia não representativa a um modelo mais participativo e politizado, mas alvo de críticas em sua integridade. 

            Prosseguindo sua saga em meio às reflexões éticas/ideológicas que impregnam a gestão pública, o Estado Brasileiro tenta se reconfigurar ainda atrelado à lógica burocrática, pouco se interessando em discutir caminhos mais contemporâneos, em busca de aplicação prática dos conceitos de nova gestão pública e do novo serviço público.

            Neste viés, o advento da Lei da Desburocratização não parece afastar completamente o sentido de burocracia proposto por Weber, muito embora busque avivar alguns de tais conceitos, como racionalidade, rotina e padronização, competência e meritocracia, especialização/profissionalização, o que poderia ser considerado não propriamente uma desburocratização (no sentido Weberiano), mas uma releitura de procedimentos burocráticos (reburocratização).

            Por fim, conclui-se também, pela própria alcunha da Lei 13.726/2018, que a crítica sobre as práticas burocráticas é um problema ligado menos à sua formulação teórica (distorção epistemológica) e mais às suas bases éticas (distorção teleológica), políticas e ideológicas.


Esclepiades de Oliveira Neto é Especialista (MBA) em Liderança, Inovação e Gestão 3.0 pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil(2020). Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Amapá, Brasil.

REFERÊNCIAS

BARBIÉRI, Luiz Felipe. Lei que dispensa autenticar cópias e reconhecer firma no serviço público entra em vigor nesta sexta. Disponível em https://g1.globo.com/politica/noticia/2018/11/23/lei-que-dispensa-autenticacao-de-copias-e-reconhecimento-de-firma-em-entra-em-vigor-nesta-sexta.ghtml. Acesso em: 13/3/2020. 

BELIEIRO JÚNIOR, José Carlos Martines; LIVACIC, Gaston Ernesto Passic. Estados Autoritários no América Latina: uma revisão crítica ao conceito de Estado Burocrático-Autoritário em Guillermo O’Donnell. Disponível em https://rebela.emnuvens.com.br/pc/article/view/346. Disponível em 13/3/2020.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 13/3/2020.

BRASIL. Lei nº 13.726, 8 de outubro 2018. Racionaliza atos e procedimentos administrativos dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e institui o Selo de Desburocratização e Simplificação. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/Lei/L13726.htm. Acesso em: 13/3/2020.

CHIAVENATO, Idalberto. Introdução a Teoria da Administração: modelo burocrático de organização. 7. ed. São Paulo. Editora CAMPUS, 2004.

FARIA, José Henrique de; MENEGHETTI, Francis Kanashiro. Burocracia como organização, poder e controle. Disponível em https://www.fgv.br/rae/artigos/revista-rae-vol-51-num-5-ano-2011-nid-46741/. Acesso em 13/3/2020.RAMOS, Jefferson Evandro Machado. Disponível em https://www.historiadobrasil.net/brasil_republicano/nova_re


[i] BRASIL. Lei nº 13.726, 8 de outubro 2018. Racionaliza atos e procedimentos administrativos dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e institui o Selo de Desburocratização e Simplificação. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/Lei/L13726.htm. Acesso em: 13/3/2020.

[ii] BARBIÉRI, Luiz Felipe. Lei que dispensa autenticar cópias e reconhecer firma no serviço público entra em vigor nesta sexta. Disponível em https://g1.globo.com/politica/noticia/2018/11/23/lei-que-dispensa-autenticacao-de-copias-e-reconhecimento-de-firma-em-entra-em-vigor-nesta-sexta.ghtml. Acesso em: 13/3/2020.

[iii]BRASIL. Lei nº 13.726, 8 de outubro 2018. Idem, art. 1º. Acesso em: 13/3/2020.

[iv] CHIAVENATO, Idalberto. Introdução a Teoria da Administração: modelo burocrático de organização. 7. ed. São Paulo. Editora CAMPUS, 2004.

[v] FARIA, José Henrique de; MENEGHETTI, Francis Kanashiro. Burocracia como organização, poder e controle. Disponível em https://www.fgv.br/rae/artigos/revista-rae-vol-51-num-5-ano-2011-nid-46741/. Acesso em 13/3/2020.

[vi] Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (…) (BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 13/3/2020.)

[vii]BELIEIRO JÚNIOR, José Carlos Martines; LIVACIC, Gaston Ernesto Passic. Estados Autoritários no América Latina: uma revisão crítica ao conceito de Estado Burocrático-Autoritário em Guillermo O’Donnell. Disponível em https://rebela.emnuvens.com.br/pc/article/view/346. Disponível em 13/3/2020.

[viii] Id, ibid.

[ix] Foca na redução de gastos, no combate à corrupção e na melhoria na prestação de serviços.

[x] Intensifica a consolidação da democracia participativa como fator de aprimoramento do serviço público.

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