Por Tilly Agra Oliveira Marreiro
Tão logo iniciadas as discussões acerca da intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro, passou-se a cogitar da utilização do chamado “mandado de busca e apreensão coletivo”.
Antes de tudo, cabe esclarecer que não se pode dar contornos de estado defesa e/ou de sítio, os quais compõem o “sistema constitucional de crises”, à intervenção federal, tendo em vista que cada uma destas medidas dispõem de limites constitucionais proporcionais aos fatos que autorizam sua decretação.
Em apertada síntese, a intervenção federal mitiga a autonomia dos Estados-Membros diante de uma das hipóteses previstas no art. 34 da Constituição Federal, não necessariamente por meio das Forças Armadas, podendo, inclusive, o interventor, quando necessário, ser civil. Contudo, no que se refere à hipótese do inciso III do referido artigo, isto é, “por termo a grave comprometimento da ordem pública”, as Forças Armadas são a melhor opção que a União dispõe para alcançar seu objetivo.
No estado de sítio, medida mais drástica das citadas, é possível, entre outras restrições a direitos fundamentais, afastar a inviolabilidade de domicílio, não necessitando o executor da medida observar o disposto no art. 5o, XI, da CF: “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. Tal “prerrogativa”, no entanto, não pode ser suscitada no estado de defesa e, por conseguinte, na intervenção federal.
Desse modo, talvez numa tentativa de dar ao Exército ferramenta semelhante, cogitou-se, recentemente, da possibilidade do mandado de busca e apreensão coletivo, o que foi defendido pelo Ministro da Defesa, Raul Jungmann[i], bem como pela Advogada-Geral da União, Grace Mendonça, a qual, aliás, disse que faria a defesa do instituto “até no Supremo Tribunal Federal”, além disso, afirmou que “por se tratar de um ato de um interventor federal, o caso precisará ser analisado pela Justiça Federal, e não por juízes estaduais”[ii].
Cabe lembrar que a busca e apreensão tem natureza jurídica de medida cautelar que visa assegurar meios de obtenção de provas, estando disciplinada no § 1o do art. 240 do Código de Processo Penal. Nessa esteira, pressupõe que tenha havido ou esteja sendo cometida uma infração penal, motivo pelo qual não pode ser decretada de forma preventiva, ou seja, a prevenir a prática de crimes ou contravenções penais.
Em outras palavras, é medida à disposição da investigação criminal e da instrução processual penal, não podendo ser utilizada, por exemplo, em atividade de inteligência policial, que busca, basicamente, a produção de conhecimento para subsidiar ações preventivas e repressivas, sem ter como objetivo a elucidação de fato determinado, o que fica a cargo da investigação criminal. Pela mesma razão, não pode a busca e apreensão servir à atividade de polícia ostensiva, que tem como missão precípua evitar ações criminosas.
Além disso, devemos observar que a busca, obviamente, deve ser determinada por juiz competente, investido de parcela de jurisdição para atuar naquele caso específico. Do mesmo modo, apenas o Delegado de Polícia e o Ministério Público possuem capacidade postulatória para representar e requerer, respectivamente, a medida. Dito de outro modo, diante da prática de uma infração penal, o Delegado de Polícia, ou Membro do Ministério Público, com atribuição para investigá-la e, se assim decidir pertinente, deverá postular o mandado de busca ao juiz com competência para julgar a eventual ação penal.
Podemos concluir, portanto, que os demais órgãos de segurança e inteligência – Polícia Rodoviária Federal, Polícia Militar, Forças Armadas e Agência Brasileira de Inteligência – não possuem atribuição nem capacidade postulatória para representar pela busca e apreensão, com exceção da PM e das Forças Armadas, unicamente no caso de crimes militares.
Feitas essas considerações preliminares, cabe esclarecer que o mandado de busca e apreensão deve “indicar, o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador; ou, no caso de busca pessoal, o nome da pessoa que terá de sofrê-la ou os sinais que a identifiquem” (art. 243, I, do CPP).
Sendo assim, seria possível a expedição de mandados de busca e apreensão coletivos, compreendidos estes como a autorização para entrada em todos os imóveis de um determinado bairro ou comunidade durante a atual intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro?
Primeiramente observa-se que, durante a intervenção federal, as Forças Armadas não substituem as funções das Polícias Civil e Militar. A figura do interventor, como bem observado em artigo da lavra do autor Paulo Reyner Camargo Mousinho, apenas substitui as funções do Governador do Estado, podendo ele, por exemplo, mudar as chefias de delegacias, trocar comandantes de batalhões, determinar a realização de operações policiais, remover servidores, aumentar efetivo etc[iii].
Destarte, em nenhum momento o Exército poderá pleitear em juízo qualquer medida de natureza cautelar no que diz respeito às infrações penais comuns, haja vista não possuir capacidade postulatória por absoluta ausência de previsão legal e constitucional, de modo que, com igual razão, o mesmo pode-se afirmar em relação ao interventor.
Inclusive, a Advogada-Geral da União, salvo melhor juízo, está duplamente equivocada ao sustentar, como visto, que, pelo fato de tratar-se de interventor federal, eventual pedido de busca e apreensão deveria ser analisado pela Justiça Federal. Primeiro porque o interventor não possui capacidade postulatória e é figura estranha à persecução penal, assim como o Governador e o Secretário de Estado da Segurança Pública, que detêm apenas atribuições administrativas e operacionais no tocante às polícias estaduais. Segundo porque a competência jurisdicional não é modificada em razão de quem representa pela medida cautelar, prova disso está no fato de que a competência da Justiça Estadual continua imutável quando a Polícia Federal investiga, excepcionalmente, crimes julgados por esta justiça – tráfico doméstico de drogas (art. 144, § 1o, II da CF) e as hipóteses previstas na lei 10.446/02 –, ou seja, o Delegado Federal deverá representar normalmente ao juízo estadual, e não ao federal.
Não é demais lembrar, também, que o interventor não poderá obrigar determinada Autoridade Policial a representar pela medida de busca e apreensão. O Delegado de Polícia deverá fazê-lo desde que, existindo investigação em curso, entenda adequada a medida, de acordo com seu livre convencimento técnico-jurídico.
Dito isso, acreditamos que a busca e apreensão coletiva, nos moldes desejados pelas autoridades envolvidas na intervenção federal, no sentido de ter acesso a imóveis indeterminados de comunidades fluminenses, mesmo representada ou requerida pela autoridade com atribuição para tanto e deferida pelo juízo competente, não encontra guarida legal ou constitucional.
É certo que a estrutura de uma favela, com casas amontoadas e, por diversas vezes, sem identificação numérica, dificulta operações policiais com o objetivo de localizar eventuais criminosos, armas, drogas e demais ilícitos. Todavia, não é crível que, por tais motivos, forças de segurança possam fazer varreduras em imóveis pelo simples fato de estarem localizados dentro de uma comunidade dominada pelo crime organizado, o que ofenderia o já citado art. 243, I, do CPP, e o princípio da igualdade, previsto no art. 5º, I, da CF.
Acreditamos, porém, que nada impede que, existindo um trabalho de investigação com elementos de informação indicativos de que vários imóveis determinados estejam sendo utilizados por criminosos como abrigo ou esconderijo de ilícitos, seja expedido mandado de busca e apreensão para sua totalidade. Neste caso, frisa-se, não há mandado de busca coletivo, o qual confere ao detentor da ordem verdadeira permissão para vasculhar residências a esmo.
Por fim, necessário esclarecer que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus 106.566/SP, em situação envolvendo o cumprimento de mandado de busca no 28° andar de determinado prédio, considerou ilegal a apreensão de equipamentos de informática do alvo da investigação no 3° andar do mesmo imóvel, pois não havia mandado judicial para este endereço.
De se concluir, então, que na hipótese de eventual apreensão de material no cumprimento de mandado de busca coletivo, sem dúvida bem mais grave do que o caso analisado pela Suprema Corte, tratar-se-ia de prova ilicitamente obtida, impregnando de nulidade toda a cadeia de atos processuais dela decorrente.
Compartilhe com seus amigos!
Caso queira receber nossas novidades cadastre-se abaixo:
Deixe sua opinião abaixo!
SIGA-NOS NAS REDES SOCIAIS:
Sobre o autor: Tilly Agra Oliveira Marreiro é Delegado de Polícia Civil do Estado do Amapá, especialista em Ciências Criminais e colaborador do site Justiça & Polícia – www.juspol.com.br.
[i] https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/ministro-da-defesa-diz-que-operacoes-no-rio-vao-precisar-de-mandados-de-busca-e-apreensao-coletivos.ghtml. Acesso em 20/2/2018.
[ii] https://g1.globo.com/politica/blog/gerson-camarotti/post/2018/02/19/agu-reconhece-que-mandado-coletivo-de-busca-e-apreensao-e-assunto-polemico-e-diz-que-podera-levar-caso-ao-stf.ghtml. Acesso em 20/2/2018.
[iii] https://juspol.com.br/criticas-aspectos-juridicos-e-consequencias-da-intervencao-federal-no-estado-do-rio-de-janeiro/. Acesso em 20/2/2018.
O DELEGADO DE POLÍCIA COMO GESTOR DE SEGURANÇA PÚBLICA: UMA NOVA VISÃO Por Paulo Reyner O…
Por Joaquim Leitão Júnior[i] Apesar de ainda existirem questionamentos por ala conservadora e classista da…
Há mais de seis anos este autor já vinha estudando o fenômeno do denominado “Stalking”,…
Os crimes hediondos e equiparados, na redação original da Lei 8.072/90, já tiveram regime “integral”…
Na onda midiática do famigerado “Caso Lázaro” vem a lume um artigo da lavra de…
O chamado “Pacote Antricrime”, que se materializou na Lei 13.964/19, foi objeto de vários vetos…
This website uses cookies.