Por Tilly Agra Oliveira Marreiro
Resumo: O presente artigo tem por escopo realizar uma breve análise a respeito dos aspectos processuais e penais da morte do indigenista Rieli Franciscato.
Palavras-chave: Rilei Fransciscato; morte indigenista; perícia antropológica.
Sumário: 1. Introdução; 2. Da análise do caso concreto; 3. Da ausência de pressupostos para configuração do crime; 4. Das considerações finais.
No último dia 9 de setembro de 2020, os veículos de comunicação informaram a morte de um dos indigenistas mais importantes do país. Com cerca de 30 anos trabalhando na defesa de povos indígenas, Rilei Fransciscato, servidor da Fundação Nacional do Índio – Funai, que exercia a função de coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental Uru-Eu-Wau-Wau, ironicamente morreu na região de Seringueiras, no Estado de Rondônia, após ser atingido no tórax por uma flecha desferida por índios isolados.
Segundo a imprensa, o fato ocorreu quando o indigenista, acompanhado de policias militares, uma vez que o local é considerado área de conflito, realizava monitoramento com o objetivo de averiguar a possível migração dos povos isolados, tendo em vista que alguns membros do grupo teriam sido vistos próximo a um acesso viário da região.
Desse modo, dúvidas surgiram em relação ao procedimento a ser adotado pelas autoridades públicas em relação à morte de Rieli Franciscato, por ter ocorrido, em tese, a prática do crime de homicídio doloso consumado.
Ocorre que, em se tratando de índios isolados, aparentemente sem nenhum contato ou interação com outras pessoas, surge o questionamento se poderiam ou não ser responsabilizados pela conduta que levou à morte do indigenista.
Inicialmente, vale lembrar que a Polícia Civil do Estado de Rondônia acertadamente repassou a apuração do caso à Polícia Federal, pois caberá à Justiça Federal o processamento do feito. Ressalta-se, salvo melhor juízo, que isso não se deve ao fato de a conduta ter sido praticada por índio, uma vez que a competência da Justiça Federal só é firmada quando o crime praticado ou sofrido por silvícolas envolve disputa ou conflito sobre direitos indígenas, conforme dicção do art. 109, XI, da Constituição Federal, bem como da jurisprudência do STF e da súmula 140 do STJ.
Acreditamos, assim, ser competente a Justiça Federal exclusivamente pelo fato de o indigenista ser servidor público federal e ter sido vitimado quando do exercício de suas funções, conforme Súmula 147 do STJ – inclusive, ainda segundo a mídia, ele estaria de plantão quando da tragédia.
Sendo assim, firmada a atribuição da Polícia Federal para investigar o caso e a competência da Justiça Federal para julgar o feito, resta saber se o fato poderá configurar crime ou não.
Para dirimir a dúvida, e partindo do conceito tripartido do crime, necessária a verificação da presença de seus dois últimos substratos (ilicitude e culpabilidade), haja vista não se ter dúvida da ocorrência do primeiro (tipicidade), considerando-se que o fato se adequa perfeitamente ao tipo penal do homicídio.
Portanto, ao se verificar as hipóteses de excludentes de ilicitude (conduta contrária ao direito), a única que, a princípio, se encaixaria ao caso seria a de legítima defesa. Contudo, na ocasião que ceifou a vida do indigenista, inexistia injusta agressão, atual ou iminente, a direito próprio ou alheio (art. 25 do Código Penal), ao contrário, o intuito da equipe composta pelo servidor da Funai e por policiais militares era monitorar e, consequentemente, adotar providência para resguardar o grupo indígena.
Não podemos descartar, no entanto, a ocorrência de erro sobre os pressupostos fáticos da legítima defesa, isto é, a crença de se estar diante de uma injusta agressão iminente, levando-se em consideração, sobretudo, o contexto de conflitos no qual está inserida a tribo indígena responsável pela morte de Rieli Franciscato.
Nesse caso, estaríamos diante de uma excludente de ilicitude imaginária (descriminante putativa), de modo que a ilicitude poderia ser excluída, desaparecendo, por conseguinte, o próprio crime.
Vale lembrar que, caso a suposição de se estar diante de situação de legítima defesa seja escusável ou invencível, restará excluído o dolo e a culpa, ao passo que, sendo o erro inescusável ou vencível, afastado estará o dolo, mas não a culpa, de acordo com o art. 20, § 1o, do CP, que aparentemente adotou a teoria limitada da culpabilidade ao tratar das descriminantes putativas.
Em seguida, cabe analisar se, no caso concreto, estaria presente a culpabilidade, sobretudo pelo fato de os autores da conduta serem silvícolas. Como sabido, esse terceiro substrato do crime é composto pela imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa.
Apesar de o Código Penal não conceituar a imputabilidade, da leitura do art. 26 conclui-se ser imputável a pessoa mentalmente sadia e plenamente desenvolvida, capaz de entender a ilicitude do fato ou de determina-se de acordo com esse entendimento, de modo que, para a maioria da doutrina, os índios isolados seriam inimputáveis pelo fato de possuírem desenvolvimento mental incompleto, raciocínio com o qual não concordamos.
O índio isolado, assim como o não índio, só deve ser considerado inimputável no caso de comprovação de ser ele doente mental ou possuir desenvolvimento mental incompleto ou retardado. Caso contrário, é mentalmente saudável. Sua cultura e seus costumes não devem ser equiparados ao desenvolvimento mental incompleto, devendo a questão ser resolvida no âmbito da potencial consciência da ilicitude, e não da inimputabilidade.
Inclusive, em substitutivo ao Projeto de Lei 2057/1991, que cria o Estatuto das Sociedades Indígenas, parece ter sido adotado esse entendimento. Segundo o § 1o do art. 151, “Nos processos criminais contra índios, o juiz ordenará a realização de perícia antropológica, a fim de determinar o grau de consciência da ilicitude do ato praticado, para efeito da aplicação do disposto no art. 21 do Código Penal”. Do mesmo modo, o art. 152 do referido PL estabelece que “Não há crime se o agente indígena pratica o fato sem consciência do caráter delituoso de sua conduta, em razão dos valores culturais de seu povo”.
Dessarte, sendo impossível conhecer o caráter ilícito do ato, uma vez que vivem isolados do restante da sociedade, os índios acabam por incidir em erro de proibição, que, por sua vez, exclui a potencial consciência da ilicitude.
Diferentemente do erro de tipo, no erro de proibição não há falsa percepção da realidade, mas, sim, desconhecimento da antijuridicidade do fato, e, como aquele, pode ser escusável, afastando a culpabilidade, ou inescusável, reduzindo a pena de um sexto a um terço (art. 21, caput, do CP).
A diferença prática entre a inimputabilidade e a ausência de potencial consciência da ilicitude, apesar de ambas excluírem a culpabilidade, é que naquela o agente estará sujeito à aplicação de medida de segurança, ao passo que nessa, desde que escusável, não subsistirá nenhuma consequência jurídica, isto é, sanção penal.
Além disso, se durante a investigação policial ficar demonstrado de maneira inequívoca a ocorrência de erro de proibição escusável, o respectivo inquérito policial deverá ser arquivado, diante da ausência de crime pela exclusão da culpabilidade. O mesmo, contudo, não ocorre no caso de inimputabilidade, devendo o agente ser denunciado ante a impossibilidade de aplicação de medida de segurança – internação ou tratamento ambulatorial (art. 97 do CP) – sem o devido processo legal.
À vista disso, no caso concreto ora analisado acreditamos que a investigação policial deverá buscar elementos de informação para se comprovar ou não a existência de conflitos na região em que se deu a morte do indigenista, assim como sua frequência e suas características, levando-se em consideração, por exemplo, eventual ocorrência de invasões armadas a terras indígenas, com grave ameaça e/ou violência aos povos que ali habitam, o que poderia configurar a ação dos índios como descriminante putativa invencível.
Concomitantemente, deverá ser realizada perícia antropológica, como previsto no art. 6o da Resolução n° 287/19 do Conselho Nacional de Justiça, mesmo na fase investigativa, com a finalidade principal de se documentar se os índios de fato são isolados, o que poderá demostrar que não tinham potencial consciência da ilicitude do ato praticado, de acordo com seus costumes, suas tradições, seus hábitos, seu modo de viver etc.
De um modo ou de outro, haveria o consequente arquivamento do inquérito policial – pela exclusão da ilicitude ou culpabilidade (ausência de potencial consciência da ilicitude) –, sem que medidas invasivas, na perspectiva do povo isolado, em tese, pudessem ser adotadas, como o contato direto, a eventual sujeição a exame de insanidade mental para comprovação da inimputabilidade, o próprio trâmite do processo penal e o risco de aplicação de medida de segurança.
Sobre o autor: Tilly Agra Oliveira Marreiro é Delegado de Polícia Civil do Estado do Amapá, especialista em Ciências Criminais e colaborador do site Justiça & Polícia – www.juspol.com.br.
O DELEGADO DE POLÍCIA COMO GESTOR DE SEGURANÇA PÚBLICA: UMA NOVA VISÃO Por Paulo Reyner O…
Por Joaquim Leitão Júnior[i] Apesar de ainda existirem questionamentos por ala conservadora e classista da…
Há mais de seis anos este autor já vinha estudando o fenômeno do denominado “Stalking”,…
Os crimes hediondos e equiparados, na redação original da Lei 8.072/90, já tiveram regime “integral”…
Na onda midiática do famigerado “Caso Lázaro” vem a lume um artigo da lavra de…
O chamado “Pacote Antricrime”, que se materializou na Lei 13.964/19, foi objeto de vários vetos…
This website uses cookies.