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Afinal, o que é Indiciamento?

Você realmente sabe o que é indiciamento? Não raro ouvem-se notícias midiáticas mencionando o indiciamento por parte da polícia de diversos indivíduos suspeitos da prática de crimes. Contudo, nota-se, seja pelo teor das notícias veiculadas, sejam pelos comentários no seio da população que poucas pessoas sabem realmente o que é o indiciamento. Somando-se a isso, é escassa a doutrina processual penal que se aprofunda no tema.

Assim, indaga-se: O que é o indiciamento? Quais são seus requisitos?

Bem, para perquirir a natureza jurídica do indiciamento (sua essência), faz-se necessário saber o contexto que ele está inserido.

O indiciamento ocorre dentro dos autos do Inquérito Policial, seja ele instaurado por portaria do Delegado de Polícia, seja através do Auto de Prisão em Flagrante (APF). Necessário dizer que o Inquérito Policial é um procedimento administrativo, portanto, conduzido por uma Autoridade Administrativa, que na maior parte dos casos é o Delegado de Polícia.

Desse modo, sendo o IP procedimento administrativo, presidido por Autoridade Policial, o indiciamento não deixa de ser um ato administrativo, merecendo atenção quanto aos requisitos competência, motivo, objeto, forma e finalidade. Mais não é só isso, mesmo sendo um ato administrativo, o indiciamento traz consigo consequências fora dessa esfera, no âmbito de Direito Penal e Processual Penal, portanto, ousa-se classificá-lo não como um mero ato administrativo, mas sim como um ato sui generis.

Como todo ato emanado de uma Autoridade Pública, ou é discricionário ou vinculado. Indiscutível que o indiciamento é um ato vinculado (que é diferente da discricionariedade da investigação), pois tão logo a Autoridade Policial consiga extrair elementos suficientes que determinada pessoa é autora de infração penal, tem o dever de realizar seu indiciamento, em razão dos princípios processuais penais da obrigatoriedade e indisponibilidade. Nesse sentido, há se trabalhar com diálogo das fontes, ligando o Direito Administrativo ao Direito Processual Penal.

Notório também que o indiciamento carrega consigo certo estigma social, pois o indiciado é visto, a partir de então, como criminoso, embora não sujeito ainda a nenhuma condenação criminal. Assim, é imprescindível que o citado ato seja motivado pela Autoridade responsável, justamente por suas consequências indeléveis para o indiciado.

O ilustre doutrinador Renato Brasileiro, aduz em sua obra que:

Indiciar é atribuir a autoria (ou participação) de uma infração penal a uma pessoa. É apontar uma pessoa como provável autora ou partícipe de um delito. Possui caráter ambíguo, constituindo-se, ao mesmo tempo, fonte de direitos, prerrogativas e garantias processuais (CF, art. 5º, LVII, LXIII), e fonte de ônus e deveres que representam alguma forma de constrangimento, além da inegável estigmatização social que a publicidade lhe imprime.[i]

Nessa esteira, prevê a Lei 12.830/2013 em seu artigo 2º, §6º que “O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indiciar a autoria, materialidade e suas circunstâncias”.

Esclarecedora e necessária a redação da legislação em comento. Muito embora a doutrina já entendesse que o indiciamento necessitava ser motivado, muitos eram feitos sem a devida motivação, em verdadeira afronta aos direitos e garantias constitucionais e requisitos do ato administrativo.

Desse modo, indiscutível que todo indiciamento deve ocupar especial atenção do Delegado de Polícia, sobretudo no que tange a indicação dos elementos que formaram sua convicção jurídica em relação à autoria delitiva, ou seja, a pormenorizada relação de evidências que o indiciado foi o provável autor do crime.

Acredita-se que a ausência de motivação do indiciamento, com a exposição da devida fundamentação jurídica, torna o ato nulo, sem afastar a possibilidade de se  impetrar de habeas corpus (mesmo excepcional) para o desindiciamento, fazendo cessar o constrangimento ilegal que dele decorre, por falta de justa causa.

Em qual momento deve ser feito o indiciamento?

Bem, o indiciamento pode ser feito em diferentes momentos no Inquérito Policial, a depender do caso concreto, ou seja, do momento em que a Autoridade indiciadora entender que já existam elementos suficientes de autoria para tanto. Desse modo, pode ser feito tão logo da instauração do IP, como ocorre, por exemplo, de Auto de Prisão em Flagrante, pois se é lavrado do A.P.F., significa que a Autoridade já formou sua convicção sobre a autoria da infração penal. Pode ser feito ainda no curso do Inquérito Policial, quando já se formou a convicção sobre a participação de determinado indiciado em um crime, mas ainda haja necessidade da continuidade das investigações em relação a outros suspeitos. Finalmente, não há óbice que o indiciamento seja realizado no Relatório Final de Inquérito Policial, sendo este, em muitos casos, o momento mais adequado para se fazer o indiciamento, vez que nessa ocasião a investigação já chegou a tal ponto que não existem mais diligências úteis a serem realizadas, restando a autoria plenamente, nessa fase pré-processual, definida.

Quem pode indiciar?

A lei 12.830/13 já mencionada, nos diz que o indiciamento é ato privativo do Delegado de Polícia. Isto é, conforme dispositivo legal, somente o profissional de carreira titular efetivo do cargo de Delegado de Polícia pode realizar o indiciamento.

Apesar da dicção expressa do dispositivo legal em comento, deve ser visto com cautela, pois em uma interpretação sistemática há se possibilitar a realização do indiciamento aos Oficiais Militares na condução do Inquérito Policial Militar para apurar crimes militares, conforme inteligência dos artigos 9º e 10º do Código de Processo Penal Militar e, reafirme-se, somente neste caso.

Igualmente, a teor da Súmula n.º 397 do Supremo Tribunal Federal[ii], em caso de prisão em flagrante de crime ocorrido nas dependências das Casas Legislativas, sendo o Inquérito Policial nesse caso específico e excepcional de competência da Polícia Legislativa, obviamente, ao responsável por sua condução nos termos do respectivo regimento interno, cabe proceder ao indiciamento.

Com exceção destes dois casos e nas situações onde o suspeito tem foro por prerrogativa de função, somente o Delegado de Polícia é autoridade competente para realização do indiciamento. Incabível, portanto, indiciamento por parte do Ministério Público em eventual procedimento investigativo, vez que não preside Inquérito Policial.

Necessário dizer ainda, que o indiciamento decorre de análise técnico-jurídica do fato, após investigação que conduz à autoria delitiva, impróprio, desse modo, quaisquer requisições sejam advindas do Ministério Público ou do juiz que determine o indiciamento de alguém, pois seria o mesmo que obrigar o Delegado de Polícia a concluir, sem os requisitos para tanto, pela autoria de quem eventualmente não foi o autor do crime apurado, consoante entendimento assente da jurisprudência pátria.[iii]

Quais as consequências do indiciamento?

Consoante todo o contexto que está inserido, podemos citar três consequências principais do indiciamento: social, policial e jurídica.

No que tange à consequência social, como já dito, o indiciamento traz estigma de criminoso ao indiciado. Porém, necessário mencionar que o indiciamento é apenas fase inicial da persecução penal, um filtro importante para que pessoas inocentes não sejam alvo deliberadamente de ação penal, que por si só já é um encargo enorme.

Para além da consequência social, há efeitos práticos na esfera policial, vez que quando se tem suporte mínimo probatório de que determinada pessoa foi autora de conduta criminosa, é realizada sua qualificação e interrogatório policial, feita pesquisa de sua vida pregressa, bem como confeccionada a Folha de Antecedentes Criminais – FAC ou Boletim de Identificação Criminal – BIC, com o consequente registro do crime praticado e Inquérito Policial respectivo. A principal função destes atos é o armazenamento em Banco de Dados interno[iv] em relação ao indiciado, possibilitando buscas e solução de eventuais delitos futuros praticados.

Finalmente, por oportuno dizer que o indiciamento não vincula o Ministério Público no oferecimento da denúncia, desse modo, perfeitamente possível que um indivíduo seja indiciado e não denunciado, ou que não seja indiciado e denunciado. Assim como, logicamente, não vincula o magistrado na condenação. Há entendimento jurisprudencial recente que o juiz não deve considerar na primeira fase da dosimetria da pena (CP, art. 59) inquéritos policiais ou mesmo ações penais em curso como maus antecedentes, má conduta social ou má personalidade para elevação da pena-base, em razão do princípio da presunção de inocência.[v]

Destarte, entendemos que, atualmente, a principal função jurídica do indiciamento é endoprocessual, ou seja, dentro do próprio processo originado do inquérito respectivo, pois se houve apontamento fundamentado do indiciado como autor de um delito, com a colheita de provas suficientes para tanto (mormente cautelares, não repetíveis e antecipadas – art. 156 do CPP), é mister a grande probabilidade de condenação.

Várias outras questões poderiam ser trazidas à baila, tais como indiciamento e investigação social em concurso público, o indiciamento de autoridades com foro de prerrogativa de função, possibilidade de indiciamento em crimes de menor potencial ofensivo etc. Porém, em outra oportunidade trataremos deste tema interessantíssimo à atividade policial.

Por fim, como forma de contribuição, deixamos nosso conceito de indiciamento, compreendido como um ato administrativo sui generis, privativo do Delegado de Polícia no âmbito de investigações de atribuição da Polícia Judiciária Civil – estadual ou federal (CF, art. 144, §§1º e 4º),  ou ainda de competência da Autoridade Militar nos crimes militares próprios, assim como Autoridade da Polícia Legislativa em crimes ocorridos nas dependências das Casa Legislativa respectiva, que imputa a alguém a autoria de um delito, tendo suporte probatório mínimo e fundamentadamente exposto, apto a trazer consequências ao indiciado no que tange à inserção de seu nome em cadastro policial em sistema, geralmente informatizado, de antecedentes criminais.

__________

Sobre o autor: Paulo Reyner é atualmente Delegado de Polícia Civil e ex-Policial Militar. Graduado em Direito pela Universidade do Distrito Federal – UDF, Especialista em Ciências Criminais e Especialista em Políticas e Gestão em Segurança Pública.

 

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[i] LIMA, Renato Brasileiro de. Curso de processo penal. – Niterói, RJ: Impetus, 2013.

[ii] Súmula 397 – STF: O poder de polícia da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em caso de crime cometido nas suas dependências, compreende, consoante o regimento, a prisão em flagrante do acusado e a realização do inquérito.

[iii] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão no Agravo Regimental no Inquérito 968/DF. Relator: NORONHA, João Otávio de. Publicado no DJ de 02-02-2015. Disponível em: http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=requisi%E7%E3o+para+indiciamento&&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO&p=true.

[iv] De acordo com artigo 20, parágrafo único do Código de Processo Penal, o Delegado de Polícia está impedido de fornecer atestados que constem anotações de inquéritos policiais contra os requerentes.

[v] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão em RE 591054/SC. Relator: AURÉLIO, Marco. Publicado no DJ de 22-02-2015; disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28RE%24.SCLA.+E+591054.NUME.%29+OU+%28RE.ACMS.+ADJ2+591054.ACMS.%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/a6ej7e5

 

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