As últimas semanas forenses foram marcadas por mais uma decisão que acirrou os debates jurídicos se o beijo roubado deveria ou não ser considerado crime ou contravenção.
Para responder essa indagação deve-se analisar o contexto fático e todas as suas singularidades.
A decisão que causou essa discussão é proveniente do Tribunal de Justiça de Mato Grosso e foi reformada em grau de recurso no Superior Tribunal de Justiça.
Longe de qualquer discurso sexista, patriarcal ou da nossa sociedade eminentemente machista, não é qualquer “beijo roubado” que serve para configurar crime contra a dignidade sexual dentro do princípio da proporcionalidade e razoabilidade.
Realmente, sem querer fazes às vezes de advogado de defesa do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, órgão notável pelas grandes decisões reiteradas sob os casos postos em sua análise, a resposta não é tão simples como alguns pensam e criticaram de forma açodada a decisão da Corte Matogrossense reformada pelo Superior Tribunal de Justiça. E mais uma vez deve se repetir que a resposta irá depender muito do fato em si apresentado no caso concreto.
A discussão ganha mais relevância e polêmica quando se lançam argumentos tais como: “e se a vítima fosse sua mãe, sua esposa, sua filha ou um parente do gênero feminino próxima de você?”
Em análise à doutrina e jurisprudência, temos posições para todos os gostos[1][2][3][4][5], mas chamamos à atenção de que não se pode aplicar as tipificações de forma indiscriminada. Deve se ter um temperamento, sob pena de se criar distorções e injustiças tanto com a vítima como para o meliante frente aos fatos.
O fato analisado na ocasião do julgamento do Superior Tribunal de Justiça tinha um plus, ou seja, da forma violenta com que se deu o beijo roubado entre outras singularidades do caso. A hipótese examinada no caso não se trata daqueles “beijos roubados” em eventos festivos ou até mesmo os famosos “selinhos” etc. Trata-se na verdade, de um autêntico fato voltado contra à dignidade sexual. No caso enfrentado[6], um indivíduo estava sobre uma mulher menor de idade com o joelho inclinado e pressionando o corpo dessa mulher, com o ato do beijo lascivo naquela. No julgamento constou ainda, que o indivíduo somente não avançou em seus atos para à conjunção carnal, devido à intervenção de um motoqueiro que passava no exato instante que os fatos se desenrolavam.
Ora, como se pode observar nesse caso específico pelos ingredientes fáticos apresentados, tudo leva para desaguar no crime de estupro, lembrando que o crime de estupro com a última reforma trazida pela Lei nº 12.015, de 2009 nesse ponto, não se limitou mais apenas e tão somente na conjunção carnal, mas ampliou seu feixe de incidência para abranger além da conjunção carnal, qualquer ato libidinoso diverso da conjunção carnal – e aqui entra uma série de atos que podem margear a zona cinzenta do crime de estupro, constrangimento ilegal ou da contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor.
Convém lembrar-se, que objeto material no crime de estupro é a pessoa quem sofre o constrangimento. Já o objeto jurídico tutelado é a liberdade sexual.
Igualmente, é importante distinguir para fins de compreensão o conceito de conjunção carnal e ato libidinoso diverso da conjunção. A par dessa preocupação, o doutrinador, Guilherme de Souza Nucci, explica que:
“Conjunção carnal: é um termo específico, dependente de apreciação particularizada, que significa a introdução do pênis na vagina. “Restritivo é o critério pelo qual apenas se admite como conjunção carnal a cópula secundumnaturam; amplo, o compreensivo da cópula normal e da anal; eamplíssimo o que engloba o ato sexual e qualquer equivalente do mesmo; assim, a cópula vaginal, a anal e a fellatio in ore” (cf. JOÃO MESTIERI, Do delito de estupro, p. 59). O critério prevalente, no Brasil, é o restritivo. Tal interpretação advém, dentre outros motivos, do fato de o legislador ter utilizado, no mesmo art. 213, a expressão “outro ato libidinoso”, dando mostras de que, afora a união pênis-vagina, todas as demais formas de libidinagem estão compreendidas nesse tipo penal. Não importa, para a configuração do estupro, se houve ou não ejaculação por parte do homem e muito menos se o hímen rompeu-se (no caso da mulher virgem)” (NUCCI, 2015, p. 1.199).
Dando sequência às exposições, nos valendo mais uma vez sobre as lições de Guilherme de Souza Nucci, este nos ensina que ato libidinoso diverso da conjunção carnal, no caso do beijo, apenas abrangeria o beijo lascivo, nos indicando que:
“ato libidinoso: é o ato voluptuoso, lascivo, que tem por finalidade satisfazer o prazer sexual, tais como o sexo oral ou anal, o toque em partes íntimas, a masturbação, o beijo lascivo, a introdução na vagina dos dedos ou de outros objetos, dentre outros. Quanto ao beijo, excluem-se os castos, furtivos ou brevíssimos, tais como os dados na face ou rapidamente nos lábios (“selinho”). Incluem-se os beijos voluptuosos, com “longa e intensa descarga de libido”, nas palavras de Hungria, dados na boca, com a introdução da língua” (NUCCI, 2015, p. 1.199).
Sobre essa análise, Cezar Roberto Bitencourt, preleciona a respeito do beijo lascivo diferenciando, o beijo lascivo como demonstração de afeto e do beijo lascivo como forma de humilhar a vítima, embora admita a possibilidade de ambas, as condutas terem o condão de configurarem crime de estupro:
“[…] Outro exemplo, em que seria preciso um pouco de razoabilidade para o intérprete, é o “roubo de um beijo lascivo”. Por “beijo lascivo” entende-se o beijo destinado a produzir ou estimular o prazer sexual, diferentemente de um rápido e fugaz toque entre os lábios. Pois bem, se o indivíduo rouba um beijo lascivo da vítima como forma de demonstrar-lhe seu afeto, ter-se-á uma conduta diferente daquela em que o sujeito rouba o beijo lascivo para humilhar a vítima. Qualquer das hipóteses poderia, em tese, configurar o estupro, haja vista o constrangimento a que a vítima é submetida, a violência no ato em si, e o ato libidinoso (tendente a produzir ou estimular o prazer). É necessário, portanto, que se verifique a real ofensa ao bem jurídico “dignidade sexual”, no fruir da liberdade da vítima em escolher com quem e quando quer beijar” (BITENCOURT, 2012, p.46).
Edgard Magalhães de Noronha reafirma essa posição enérgica quanto ao beijo lascivo (quando ainda existia o tipo do art. 214, do Código Penal [Atentado Violento ao Pudor] que migrou com advento da Lei nº 12.015, de 2009 para o crime de estupro do art. 213, do mesmo diploma) ao afirmar sobre o beijo que “não temos dúvida em considerá-lo ato de libidinagem, capaz de integrar o crime deste artigo, quando dado, por meio de violência ou ameaça, num impulso de luxúria e de volúpia” (NORONHA, 1964, p. 167).
Luiz Regis Prado na mesma linha apregoa que:
“a inclusão de todos os tipos de cópula no delito de estupro, qualificando o atentado violento ao pudor como um crime menos grave. […] Um desafio que causa inquietação à doutrina e aos tribunais é a gradação dos atos libidinosos, que, obviamente, posicionam-se numa linha ascendente de um simples toque até o coito anal, que situa-se no mesmo grau do estupro. Assim, se é correta a classificação do beijo lascivo ou com fim erótico como ato libidinoso, não é menos correto afirmar que a aplicação ao agente da pena mínima de seis anos, nesses casos, ofende substancialmente o princípio da proporcionalidade das penas”(PRADO, 2010, p. 210).
Entretanto, não se pode perder de vistas outra faceta tratada pela doutrina, acerca do beijo lascivo. Assim, entendendo que o beijo lascivo não configura atentado violento ao pudor, Rogério Greco aduz que o agente:
“(…) Poderá nesse caso ser responsabilizado pelo delito de constrangimento ilegal, previsto no art. 146 do Código Penal, ou mesmo pela contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor (art. 61 da LCP), dependendo da intensidade e da gravidade do fato praticado, evitando-se, outrossim, a aplicação de uma pena extremamente desproporcional” (GRECO, 2015, p. 504).
Rogério Sanches Cunha pontua também que:
“A expressão ‘outro ato libidinoso’ é bastante ampla, porosa e, se não interpretada com cautela, pode culminar em séria injustiça, como já registrada pela nossa jurisprudência quando os Tribunais subsumiam ao tipo do art. 214 do CP o simples beijo lascivo. De lege ferenda (leitura futura), deve o legislador exemplificar os atos considerados libidinosos, permitindo ao aplicador encontrar outros que com aqueles se assemelham. Por enquanto, de lege lata (lei posta), precisa o aplicador aquilatar o caso concreto e concluir se o ato praticado foi capaz de ferir ou não a dignidade sexual da vítima. Como exemplo citamos o coito anum, interfemora, a fellatio, o cunnilingus, o anilingus, ou ainda a associação da fellatio e o cunnilingus, a cópula axiliar, entre os seios, vulvar, etc” (CUNHA, 2010. p. 250).
De forma similar aos posicionamentos em exposição, o professor, Paulo José da Costa Junior, ilustra que:
“Discute-se se o beijo possa ser considerado um ato libidinoso. (…) O beijo dado nos seios, no colo ou em outras partes pudendas do corpo poderá configurar-se como ato de libidinagem. Entretanto, como a lei penal pune a prática de ato libidinoso praticado mediante violência, será difícil configurá-la se o agente vier a beijar de inopino, embora em partes mais recatadas a vítima. De mais a mais, existe uma hierarquia da luxúria, se os atos libidinosos correspondem a diversos graus de devassidão, o beijo, nos tempos atuais, não pode ser considerado um ato de descomedimento do apetite carnal” (COSTA JUNIOR, Paulo José da. Código Penal Comentado, Editora Saraiva, 2011).
A propósito, sobre o crime de estupro vale transcrever o que reza o art. 213, do Código Penal Brasileiro, bem como seu aspecto doutrinário quanto à abrangência dessa tutela da dignidade sexual. Vejamos:
“TÍTULO VI
DOS CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUALCAPÍTULO I
DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUALEstupro
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
1o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
2o Se da conduta resulta morte: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos” (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Seguindo o posicionamento de alguns doutrinadores, o beijo lascivo poderia se enquadrar também nas premissas insculpidas do art. 146, do Estatuto Penal:
“Constrangimento ilegal
Art. 146. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:
Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.”
De outro quadrante, para outra parcela da doutrina, o beijo lascivo se amoldaria à contravenção penal da importunação ofensiva enumerada no art. 61, da Lei de Contravenção Penal. Confira-se:
“Art. 61. Importunar alguem, em lugar público ou acessivel ao público, de modo ofensivo ao pudor:
Pena – multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis”.
Extrai-se das discussões apresentadas, que o “beijo roubado” para ser crime ou contravenção penal deverá ser analisado os fins lascivos (libidinosos) ou não em si, bem como o próprio contexto fático (se há violência ou grave ameaça) com o comportamento da vítima (se consentiu ou não) entre outros detalhes, elementos esses que nortearão a resposta a ser construída no caso concreto.
Por fim, a resposta quanto à polêmica se o “beijo roubado” é crime ou contravenção penal não será tão simples como alguns pensam e vai depender exclusivamente do fato em si posto sob análise, que vai reclamar dos profissionais do Direito, a arguta sensibilidade, desarraigada da cultura sexista e machista sem ruborizar a mulher, sob a lupa do valor axiológico da Justiça. Por isso, atrevemos e ousamos a afirmar, que infelizmente sob o ponto de vista da segurança jurídica, essa é uma discussão que está longe de ser pacificada.
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