Por César Ávila Sousa
Antes de entrar no mérito do COAF e o tema proposto (acesso aos dados do COAF pelo Delegado de Polícia), necessário expor o contexto e razões que ensejaram a criação do COAF e sua importância no combate aos crimes, principalmente ao crime organizado.
A compreensão de que alguns crimes deixaram de ter eventual ocorrência na vida de uma pessoa para se tornar um meio de vida, principalmente quando dele decorrem frutos econômicos, possibilitando uma vida luxuosa e acesso aos instrumentos e facilidades que somente com muito dinheiro é possível, vem atraindo muitas pessoas, não apenas pelo conforto do dinheiro, mas pelo poder gerado ao se aliar forças bélicas, econômica e política.
Al
Trazendo para uma realidade mais palpável, nos últimos anos os escândalos envolvendo desvios de dinheiro público através de contratos firmados pelo Estado Brasileiro e suas empresas públicas, com volume de dinheiro que ultrapassa a casa dos bilhões de reais, não é crível que alguém vá esconder todo esse dinheiro em colchões, botijas ou mesmo enterrar. São operadas as mais diversas e criativas formas desse dinheiro ilícito retornar à economia, aparentando uma origem lícita, já a disposição de quem cometeu o crime, podendo gozar livremente destes frutos, é a chamada lavagem de dinheiro.
Notadamente esses valores são reinvestidos da própria pratica criminosa, fortalecendo a estrutura do crime com armas mais pesadas, instrumentos tecnológicos e até financiamento de campanhas, desde que possibilitem maior eficiência ou garantam o resultado do crime, incluindo a proteção aos criminosos.
O poder econômico possibilita maior organização dos criminosos, os quais passam a atrair a contribuição de outras pessoas que também querem participar dos lucros, com isso facilmente são amealhados soldados para o tráfico, atraídos servidores públicos de baixa densidade moral, chegando até o ponto de financiar políticos para desenvolver ações que possam facilitar o crime, como fornecer informações privilegiadas e até auxiliar na recolocação no mercado dos dividendos econômicos auferidos pelas práticas criminosas, dando a aparência de lícita (lavagem de capital).
O interesse global surge com a proliferação do tráfico por todo o mundo, movimentando quantias vultosas, causando inclusive abalo as economias de alguns países, deixando claro que o crime organizado ultrapassa as fronteiras, não apenas em busca de maior poder e lucro, mas também como forma de proteção ao lucro obtido.
Posta a dimensão danosa que o poder econômico das organizações criminosas tem, desde a Década de 80, principalmente com a Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substancias Psicotrópicas realizada em Viena[i], a qual o Brasil é signatário (Dec. 154 de 26 de junho de 1991)[ii], que uma política global vem se desenvolvendo para combate à lavagem de dinheiro, pois esses recursos econômicos além de financiar os crimes destacados, outras práticas como terrorismo também necessitam de recursos econômicos, o que a história já registra o uso do terror para pressionar governos e a população na defesa dos interesses criminosos.
No Brasil, com advento da Lei nº 9.613/98, é criada a previsão do crime de lavagem de capitais[iii], ao passo que também surgi o órgão responsável por monitorar as movimentações econômicas suspeitas, no caso o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF (art. 14 da Lei nº. 9.613/98).
O COAF é um órgão ligado ao Ministério da Fazenda e tem por finalidade disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar ocorrências suspeitas de atividade ilícita relacionadas à lavagem de dinheiro.
Como é feito esse controle por parte do COAF? A lei nº. 9.613/98 prevê uma série de pessoas físicas e jurídicas que lidam com ativos financeiros, desde instituições bancárias, valores mobiliários, metais e pedras preciosas, artes entre outros ativos que representem grande volume de dinheiro, elencadas nos art. 9º, determinando que elas comuniquem aos órgãos de controle vinculado a área de atuação, operações tidas como suspeitas.
Para exemplificar o exposto acima, no caso de atividades bancárias é o próprio Banco Central do Brasil (BACEN) quem disciplina a atividade. Tem poder normativo e estabelece regras para operações financeiras, inclusive define as que são consideradas suspeitas e por isso de comunicação obrigatória. Assim, caso uma instituição bancária identifique uma operação suspeita, seja por critérios disciplinados pelos BACEN ou mesmo que devido a forma atípica o banco entenda como suspeita, deve então comunicar ao BACEN a dita operação.
Na hipótese de um setor econômico não possuir órgão regulador da atividade, as comunicações são realizadas diretamente ao COAF, o qual também expede de forma geral as regras e critérios para identificação e comunicação de operações suspeitas.
As obrigações das pessoas físicas e jurídicas estão previstas nos artigos 10 e 11 da Lei nº. 9.61/98, o que cada órgão de controle e o próprio COAF definem critérios mínimos para identificação do que seriam as operações suspeitas, sendo então obrigatória a comunicação de tais operações, ficando sujeito a penalidades pelo não cumprimento.
A partir de tais comunicações, o COAF realiza uma série de verificações para confirmar se a operação é realmente suspeita, o que caso confirmada, comunicará os órgãos competentes para investigação, notadamente o Ministério Público e a Polícia Judiciária (art. 15 da Lei nº. 9.613/98).
Portanto, o COAF é o órgão que concentra e analisa todas as operações realizadas dentro dos critérios estabelecidos como de comunicação obrigatória e as apontadas como suspeitas, consistindo em um banco de dados para auxiliar o Delegado de Polícia em investigações que perpassem pela análise de lavagem de dinheiro ou mesmo que tenha alguma repercussão financeira, auxiliando em possíveis informações de operações envolvendo as pessoas investigadas.
Conforme já exposto, o COAF recebe as comunicações e analisa, o que identificando a operação como suspeita, deve comunicar os órgãos responsáveis pela apuração (Ministério Público e Polícia Judiciária). Nestes casos, as comunicações do COAF poderão ser a justa causa penal para início da investigação.
Outra forma seria no curso da investigação criminal, solicitar do COAF um Relatório de Inteligência Financeira (RIF) para que aponte as comunicações suspeitas vinculadas aos investigados. Tais informações podem revelar negócios e movimentações que indicam a prática de algum ilícito, ou mesmo a lavagem de dinheiro, possibilitando subsidiar medidas mais profundas como a quebra do sigilo bancário e fiscal, destinadas a melhor análise das informações e possível confirmação da operação financeira como ilícita.
É bom ressaltar que os relatórios emitidos pelo COAF são de inteligência, ou seja, seguem uma classificação própria das agência de inteligência, portanto, o cuidado na análise de tais informações é primordial, aconselhando sempre que necessário conjugar com outros elementos, principalmente uma análise patrimonial dos investigados, movimentações bancárias, históricos da evolução de bens e o que for vinculado as atividades econômicas dos suspeitos, robustecendo os indícios que confirmam ser realmente os valores de origem ilícita ou mesmo um procedimento de lavagem de dinheiro.
Acredito que a princípio deve surgir ao leitor o questionamento quanto a legalidade de tais comunicações sem a prévia autorização judicial relativa a quebra de sigilo bancário ou outro dado protegido por sigilo? Neste sentido, o STJ[iv] vem consolidando o entendimento de que não há ilegalidade nas comunicações e dados fornecidos pelo COAF no âmbito de investigações criminais, ao contrário disso, tais informações são reconhecidas já como fumus commissi delicti para ensejar medida cautelar de afastamento dos sigilos bancários e fiscal, possuindo respaldo na própria lei de lavagem que determina ao COAF que comunique os órgãos responsáveis as operações suspeitas, justamente para que seja melhor apurado.
Os relatórios e o acesso as informações estão no próprio site do COAF (www.coaf.fazendo.gov.br), o que após se cadastrar é possível fazer uma solicitação de Relatório de Inteligência Financeira (RIF). Para tanto, alguns requisitos terão que ser preenchidos como forma de segurança, por isso deve indicar: número e natureza do procedimento de investigação instaurado, informações sobre os fundados indícios da existência do ilícito sob investigação, com indicação dos respectivos tipos penais, identificação das pessoas envolvidas na investigação, com indicação do nome e do CPF ou CNPJ, conforme o caso[v].
Devido ao COAF concentrar as comunicações suspeitas, é possível localizar transações desde uma simples transferência bancária, até investimentos em valores mobiliários, artes, imóveis, contratos relativos a esportistas e artistas, auxiliando, portanto, como uma ferramenta que pode encurtar o caminho na pesquisa de onde foi escondido o dinheiro amealhado com as práticas criminosas.
A título de exemplo, na hipótese de um traficante que ver seu “negocio” prosperar e não mais dá para guardar o dinheiro consigo, precisando atuar junto as instituições bancárias, dificilmente irá usar uma conta em seu próprio nome. Para ser mais simples, digamos que junte na comunidade onde mora, pessoas humildes que sejam beneficiárias de algum programa social e em troca de algum valor, as mesmas cedam a ele a conta bancária, o cartão e a senha para movimentação. Então o traficante passe a usar tais contas para movimentar milhares de reais.
Neste caminho, durante investigação são apreendidos com o traficante vários cartões de contas bancárias, é possível de antemão que se solicite ao COAF informações sobre movimentações suspeitas em nome dos titulares das contas, o que apontando volume incompatível com a renda de tais pessoas (beneficiárias de programas sociais), há clara suspeita de lavagem.
Outrossim, ainda no mesmo exemplo, é possível que os cartões das contas bancárias sejam deixados com o traficante não para lavagem de dinheiro, mas como garantia de pagamento de dívidas com droga, o que certamente, não serão identificadas operações suspeitas pelo COAF, permitindo encurtar a investigação que na hipótese de quebra do sigilo de todos os titulares das contas, além da demora em receber as informações, pode demandar muito tempo e energia com uma linha de investigação que não trará nenhum resultado útil ao caso, ao menos em relação à possível lavagem de capital.
Portanto, o intercâmbio de informações, a realização de convênios para facilitar o acesso a dados de operações suspeitas, possibilitam não apenas a identificação de possível lavagem de capital, mas também a recuperação desses ativos, permitindo um melhor rastreamento dos valores e bens, inclusive com órgãos de outros países.
O combate à lavagem de capitais não apenas retira das organizações criminosas boa parte de seu poder, também impede ações danosas na economia, dado que dentre as formas de lavagem está o investimento na própria econômica, por vezes tornando a concorrência desleal devido o pouco interesse na atividade econômica, mas sim no retorno dos valores já limpos, chegando ao ponto de operar sofrendo prejuízos na atividade econômica, o que consequentemente torna a competição no mercado desleal.
A recuperação de valores oriundos de crimes e levados a lavagem de capital, permite além da recomposição dos danos, o financiamento do combate à prática de ilícitos e o desenvolvimento de tecnologias como são os laboratórios de lavagem de capital, difusão da informação através de cursos e encontros em que são tratadas técnicas e casos que permitem que outros órgãos possam melhor atuar.
Desta forma, o acesso pelos Delegados de Polícia as informações prestadas pelo COAF é uma ferramenta primordial no combate as organizações criminosas, principalmente aquelas que já tenham atuação em vários locais e com poder econômico mais forte, auxiliando então não apenas na identificação do crime em si, mas permitindo que seja extirpada a organização criminosa, a qual sem os recursos financeiros, menor força terá para agir contra as forças legítimas do Estado.
Deixe sua opinião logo abaixo, participe da discussão!
Compartilhe com seus amigos!
Caso queira receber nossas novidades cadastre-se abaixo:
SIGA-NOS NAS REDES SOCIAIS:
__________
__________
Referências bibliográficas:
O DELEGADO DE POLÍCIA COMO GESTOR DE SEGURANÇA PÚBLICA: UMA NOVA VISÃO Por Paulo Reyner O…
Por Joaquim Leitão Júnior[i] Apesar de ainda existirem questionamentos por ala conservadora e classista da…
Há mais de seis anos este autor já vinha estudando o fenômeno do denominado “Stalking”,…
Os crimes hediondos e equiparados, na redação original da Lei 8.072/90, já tiveram regime “integral”…
Na onda midiática do famigerado “Caso Lázaro” vem a lume um artigo da lavra de…
O chamado “Pacote Antricrime”, que se materializou na Lei 13.964/19, foi objeto de vários vetos…
This website uses cookies.