ABIGEATO – Uma análise crítica à Lei nº. 13.330/16 – Justiça & Polícia

ABIGEATO – Uma análise crítica à Lei nº. 13.330/16

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Já está em vigor a mais nova alteração legislativa penal do ordenamento jurídico brasileiro, acrescentada pela Lei n.º 13.330, de 02 de Agosto do corrente ano (2016), que inseriu uma nova qualificadora para o crime de furto e ainda criou um tipo penal autônomo, com o nonen iurisReceptação de animal”.

Sem sombra de dúvidas as novas figuras penais representam manifestação do desejo da bancada ruralista no Congresso Nacional, com o crescente número de furtos de gado que vem ocorrendo no país. A título de informação, o Projeto de Lei foi apresentado pelo Deputado Federal José Affonso Ebert Hamm, Engenheiro Agrônomo e ex-secretário de Agricultura no Rio Grande do Sul, o qual tem forte ligação com o setor ruralista.

Normal em uma democracia representativa que os vários setores da sociedade busquem satisfazer seus anseios através da criação legislativa. Certamente, no ano de 1996 quando foi inserido o parágrafo 5.º ao art. 155 do Código Penal, havia pressão por parte das seguradoras de veículos para coibir o transporte de veículos para outros países, pela dificuldade  de recuperação destes.

Nesse momento, o crime de furto de gado, conhecido como abigeato ou abacto, causa enormes prejuízos aos pecuaristas, na medida que é de difícil investigação, pois os animais tornam-se quase que não identificáveis após o abate, sendo vendidos a frigoríficos clandestinos, obviamente, sem o aval da vigilância sanitária. Ademais, ocorre em locais rurais e ermos, o que dificulta também a presença de testemunhas e rastreio do produto do crime.

Antes de mais nada, confira-se as alterações supramencionadas:

Art. 155.  …………………………………………………………..
………………………………………………………………………………..
6o  A pena é de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos se a subtração for de semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido em partes no local da subtração.” (NR)
Receptação de animal
Art. 180-A.  Adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito ou vender, com a finalidade de produção ou de comercialização, semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido em partes, que deve saber ser produto de crime:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.”

Conceito de semovente domesticável de produção

Ambos tipos penais acrescentados contém como elementar a figura do semovente domesticável de produção. O alcance na norma incriminadora não chega a ser de difícil compreensão, considerando que alguns institutos do direito penal devem extrair seu significado de outros ramos do direito, compreendido em sua acepção sistemática, mantendo-se um diálogo entre as fontes, nesse caso diálogo de complementariedade.

Assim, conforme nos ensina doutrinadores do Direito Civil, semovente é aquele ser que tem aptidão para se movimentar de um lugar para o outro por força própria, tratando-se de um bem móvel por natureza ou essência [i].

domesticável é o animal suscetível de amansamento para convivência com ser humano, geralmente empregado para produção agrícola ou mesmo no seio da residência, a exemplo de bovinos, equinos, aves como galinhas ou codornas, entre outras.

Além de ser semovente domesticável, a lei ainda exige que seja de produção, dessa forma, não basta ser um animal doméstico, como um cão ou gato, se faz necessário que o semovente seja empregado na produção, ou seja, a finalidade deve ser de geração ou circulação de riqueza, na atividade comercial ou industrial.

Da nova qualificadora do crime de furto

Nesse sentido, a nova qualificadora descrita no § 6.º do art. 155 do Código Penal, procura tornar mais gravosa a conduta de subtrair semovente domesticável de produção, ainda que dividido em partes no local da subtração, imputando uma pena de 2 a 5 anos de reclusão.

Apesar da compreensível pressão do setor agrícola, indaga-se qual será o próximo objeto material a qualificar o crime de furto, porque primeiro foi veículo automotor objeto de transporte interestadual ou internacional, agora semovente domesticável de produção. Será que a cada nova onda de modalidade de furto necessitaremos de um novo tipo penal?

Por esse raciocínio furto à residência, furto de armas de policiais, furtos de aparelhos celulares (aliás bastante comum), cada um deveria ter um novo parágrafo acrescentado ao art. 155 do CPB. Será mesmo que essa seria a melhor técnica legislativa?

Acredita-se que a mais nova qualificadora do crime de furto não passe da famigerada legislação penal simbólica, com intuito de acalmar os ânimos sociais, sem, de fato, resolver o problema.

Do suposto agravamento da qualificadora

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A nova qualificadora traz como preceito secundário a pena de reclusão de 2 a 5 anos. Com certeza a intenção do legislador foi agravar a punição aos infratores desta modalidade de subtração patrimonial.

Entretanto, a inovação legislativa pode caracterizar um abrandamento ou invés de um recrudescimento. Explico: Sem a presença da qualificadora descrita no § 6.º, se duas pessoas em concurso subtraíssem um semovente domesticável de produção, um boi de uma fazenda, por exemplo, e posteriormente o vendessem para um frigorífico qualquer, estavam sujeitas a uma pena de reclusão de 2 a 8 anos e multa (§4.º, IV, art. 155); Caso apenas um indivíduo subtraísse o mesmo boi do nosso exemplo, mas cortasse as cercas que guarneciam o animal, incorreria em destruição ou rompimento de obstáculo à subtração (§4.º, I, art. 155), igualmente respondendo por uma pena de 2 a 8 anos de reclusão e multa.

Todavia, além de o legislador ter se esquecido da pena de multa em crime patrimonial, fez com que tal modalidade de furto se tornasse especial, impedindo a aplicação de todas as qualificadoras descritas no § 4.º do art. 155. Como a pena máxima é de 5 anos de reclusão, mesmo que o crime seja cometido em concurso de pessoas, com rompimento de obstáculo, com abuso de confiança ou mediante fraude ou destreza, a pena máxima será de 5 anos de reclusão e não 8, como antes da inovação legislativa.

Salienta-se que esse entendimento é assente na doutrina, conforme nos fala Guilherme Nucci, ensinando sobre a qualificadora do § 5.º, in verbis:

“Caso o agente furte um veículo, incidindo inicialmente na figura do caput (furto simples) e depois leve o objeto subtraído para fora do País, a figura é qualificada (§5. º). Se o autor do furto rompeu obstáculo para a subtração da coisa (figura do § 4.º, I, do art. 155) e, em seguida, levou o veículo automotor para fora do Estado ou do País, incide somente a qualificadora mais grave, que é a do § 5.º” [ii]

Desse modo, nosso hábil legislador criou uma situação inusitada, uma qualificadora especial com pena menor que a qualificadora geral. Certamente, considerando que o art. 5º, XL da CF, dispõe que a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu, será objeto de questionamento a aplicação do preceito secundário da nova qualificadora aos crimes já julgados, com condenação superior a cinco anos, tendo como rés furtiva semovente domesticável de produção, pois nesse sentido representa lei nova benéfica, que retroage para beneficiar o réu.

Destarte, os processos em andamento, sentenciados ou não, assim como aqueles já sujeitos à execução sujeitam-se a novatio legis in mellius.

Outro posicionamento que poderá surgir, estando presentes os requisitos, é alegação da continuidade da incidência da pena da qualificadora descrita no § 4.º, porque mais grave, contudo, pelo princípio da especialidade, a adequação típica exigirá a incidência no § 6.º. De outra sorte, porque o legislador acrescentaria a qualificadora se não fosse para aplicá-la?

A nosso sentir, configurando as hipóteses descritas no § 4.º, as quais qualificariam o crime, surgirão duas correntes, uma advogando a incidência desta qualificadora, porque mais grave, e outra, a qual reputa-se mais técnica, defendendo a aplicação da qualificadora descrita no § 6.º, considerando que é especial em relação às demais. Restando ao juiz, nesse caso, apenas considerar eventual concurso de pessoas, fraude, rompimento de obstáculo etc, como circunstância agravante (art. 61 e 62 do CPB), caso haja adequação a uma delas e, caso não haja, como circunstância judicial desfavorável (art. 59 do CPB), sopesando sua maior reprovabilidade.

Conclui-se, desse modo, que o único agravamento foi em relação ao furto simples de semovente domesticável de produção, que passou a ter pena de 2 a 5 anos de reclusão, ao invés de 1 a 4 anos e multa (art. 155, caput), além da impossibilidade, nesse caso, de suspensão condicional do Processo (art. 89, da Lei 9.099/95), porque a pena mínima é superior a 1 ano.

Por outro lado, a nova pena máxima no caso de furto simples, consequentemente, também afasta a possibilidade de ser arbitrada fiança pelo Delegado de Polícia, vez que superior a 4 anos, nos termos do art. 322 do CPP. O que não representa, necessariamente, um agravamento da situação do indivíduo que incidiu no crime, pois o juiz pode conceder liberdade provisória sem fiança.

Finalmente, ressalta-se ainda a possibilidade de aplicação da causa de privilégio (§2.º, art. 155) ao furto qualificado descrito no § 6.º, nos termos da Súmula 511 do STJ, in verbis: “É possível o reconhecimento do privilégio previsto no § 2º do art. 155 do CP nos casos de crime de furto qualificado, se estiverem presentes a primariedade do agente, o pequeno valor da coisa e a qualificadora for de ordem objetiva.”  Da mesma forma, é possível a aplicação da causa especial de aumento de pena referente ao repouso noturno (§1.º, art. 155), consoante entendimento recente do STJ.

Da nova modalidade de receptação

No que tange ao novo tipo denominado Receptação de animal (art. 180-A), apesar de não ter se esquecido da multa desta vez, o legislador criou o mesmo problema já discutido em relação à qualificadora do § 6.º, vez que o novo crime é especial em relação Receptação qualificada, descrita no § 1.º do art. 180.

Assim, se no exercício da atividade comercial, inevitavelmente surgirá a dúvida qual tipo aplicar, pois enquanto a pena da receptação qualificada é de 3 a 8 anos e multa, a pena do novo crime de receptação de animal traz pena de 2 a 5 anos de reclusão e multa.

Nesse caso com o fator complicador da localização topográfica, porque nem no mesmo artigo estão os tipos penais em comento, ou seja, o art. 180-A é um tipo autônomo em relação ao art. 180, não havendo se falar na aplicação deste se a incidência se adequar mais àquele, mesmo que menos gravosa.

É de notar que o dono de um frigorífico que adquira, transporte, tenha em depósito ou venda semovente domesticável de produção, ainda que divido em partes, mesmo estando no exercício da atividade comercial, incidirá nas penas do art. 180-A (2 a 5 anos de reclusão e multa) e não nas penas do § 1º do art. 180 do CPB (3 a 8 anos de reclusão e multa).

Não se esquecendo ainda que o novo crime ainda traz consigo uma finalidade especial de agir para não deixar dúvidas “com a finalidade de produção ou de comercialização”, afastando por completo a figura qualificada da receptação.

Conclusão

Por tudo isso, não se sabe realmente se a intenção do legislador ao editar a Lei n.º 13.330/16 foi agravar a conduta dos indivíduos que subtraem ou receptam semoventes, ou se foi de abrandá-la, na medida que conseguiu, por um lado, causar confusão legislativa suficiente para criar uma qualificadora especial com pena menor que a geral e de outro lado criar um novo tipo penal especial com pena também menor.

De se ver ainda a possibilidade de requerimento  pleiteando a aplicação da lei mais benéfica, por isso mesmo retroativa aos já condenados com trânsito em julgado.

A incompetência legiferante é gritante, seja no intento de criar legislações penais de emergência e simbólicas, seja no desserviço ao direito penal já existente, tornando a legislação cada vez mais incompreensível e inaplicável, sujeita a todo tipo de questionamento.

No afã de agradar um eleitorado específico, o legislador mais uma vez nos presenteou com uma inovação penal mal feita, sem preocupação com a técnica legislativa.

Bem, a lei é bastante recente, mas inevitavelmente os juízes das Varas de Execuções (artigo 66, inciso I, da LEP, art. 13 LICPP e da Súmula 611 do STF) terão bastante trabalho ao reanalisar os processos já julgados com essas características, assim como a comunidade jurídica em geral em indicar a correta incidência típica da conduta de subtrair ou receptar semovente domesticável de produção. Esperemos, assim, os posicionamentos que ainda surgirão.

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JUSPOLSobre o autor: Paulo Reyner é atualmente Delegado de Polícia Civil e ex-Policial Militar. Graduado em Direito pela Universidade do Distrito Federal – UDF, Especialista em Ciências Criminais e Especialista em Políticas e Gestão em Segurança Pública.

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[i] TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 3 ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Ed. Método, 2013 p. 164.

[ii] NUCCI, Guilherme de Souza, Manual de Direito Penal: parte geral: parte especial. 7 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. P. 728.

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