No âmbito da Polícia Judiciária Civil o cargo máximo do órgão é denominado Delegado Geral, em alguns estados também se chama Chefe de Polícia, aliás, nomenclatura designada pelo Código de Processo Penal nos artigos 5º, §2º e 675, §1º. No âmbito da Polícia Federal o cargo corresponde ao de Diretor Geral.
Ocorre que, independente da nomenclatura adotada, esta função é de importância indelével para a Polícia Judiciária, pois o gestor máximo, nomeado pelo Governador no caso dos Estados-membros, instituirá toda uma diretriz a ser seguida durante o período em que comandará o órgão.
Nos termos do art. 144, § 4º da Constituição, as infrações penais devem ser apuradas pela Polícia judiciária (exceto as militares), que é dirigida por Delegados de Polícia de carreira, confira:
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
(…)
IV – polícias civis;
(…)
4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.
A grande celeuma em relação ao cargo de Delegado Geral consiste na possibilidade, ou não, de as Constituições Estaduais estabelecerem requisitos, dentre os Delegados de carreira, para nomeação por parte do respectivo governador.
Nesse prisma, a possibilidade de a Constituição Estadual ter previsão no sentido que o Chefe da Polícia Civil se dará entre os Delegados da classe mais elevada, ou ainda condicionando um tempo mínimo na carreira, já foi objeto de discussão no Supremo Tribunal Federal em pelo menos três ocasiões.
Na primeira delas, em análise a regra contida na Lei Estadual n. 11.438/91 do Estado de Goiás (art. 6º, parágrafo único, alínea “a”), o Procurador Geral da República questionou a constitucionalidade da previsão que o Diretor Geral da Polícia Civil seria escolhido entres os Delegados da classe mais elevada da carreira, momento em que o tribunal firmou entendimento que como a Constituição Federal não faz essa distinção, limitando-se a mencionar que as Polícias Civis serão dirigidas por Delegados de Polícia de carreira, não poderia o constituinte estadual inserir um requisito a mais, por violação ao princípio da simetria. [i]
Em segundo entendimento, evoluindo sua jurisprudência, o STF modificou seu posicionamento, passando a entender que o Estado-membro, ao disciplinar o assunto, tem competência legislativa para estabelecer um requisito a mais além da regra prevista no art. 144, §4º da CF/88, o que possibilita exigir que o Chefe da Polícia Civil seja pessoa que tenha experiência, assim, poderia haver previsão que o cargo deve ser preenchido entre os Delegados da classe mais elevada da carreira, prestigiando a autonomia político-administrativa dos entes da federação.
Comentando sobre o tema, o insigne Ministro Gilmar Mendes, esclareceu que:
Constituição não poderia deixar de pressupor que a carreira significaria experiência e profissionalização do serviço público. Aduziu-se que o STF vem possibilitando uma verdadeira reconstrução jurisdicional da própria teoria do federalismo, afastando aquela anterior subordinação dos Estados-membros e dos Municípios ao denominado ´standard federal´ tão excessivamente centralizador da CF/69, na qual estabelecia uma concentração espacial do poder político na esfera da União. Tendo isso em conta, ressaltou-se que a federação brasileira fora uma construção artificial e caberia a esta Corte auxiliar na arquitetura dessa autonomia estadual.[ii]
Por outro lado, voltando a seu posicionamento original, em Ação Direta de Inconstitucionalidade tendo como objeto a Constituição Estadual de Santa Catarina, em decisão do mês de dezembro de 2014, a Corte Maior voltou a decidir que é inconstitucional que a Constituição Estadual tenha previsão que o cargo de Chefe da Polícia Civil se dê somente entre a classe mais elevada da carreira.
De outra sorte, também ficou bastante claro que o Chefe da Polícia Civil não pode ser alguém que não integre a carreira de Delegado de Polícia, como, por exemplo, Comissários que ingressaram sem concurso público antes da Constituição de 1988.
Tendo como fundamento o princípio constitucional implícito da simetria, que demanda necessidade reprodução obrigatória de determinados preceitos prescritos na Constituição Federal nas Constituições Estaduais, o STF entendeu inconstitucional a exigência de quaisquer requisitos que não previstos na Lei Maior para a direção da Polícia Civil, confira os principais pontos do julgado abaixo:
O Plenário julgou procedente pedido formulado em ação direta para dar interpretação conforme ao § 1º do art. 106 da Constituição do Estado de Santa Catarina, no sentido de que se mostra inconstitucional nomear, para a chefia da polícia civil, delegado que não integre a respectiva carreira, ou seja, que nela não tenha ingressado por meio de concurso público. A norma impugnada, na redação conferida pela EC estadual 18/1999 — esta última de iniciativa parlamentar —, dispõe que o chefe da polícia civil, nomeado pelo governador, será escolhido entre os delegados de polícia. Na sua redação originária — norma também impugnada — o dispositivo determinava que a escolha recaísse sobre delegados de final de carreira. O Colegiado asseverou que, no caso, estaria viabilizada a disciplina da matéria em comento mediante emenda constitucional, considerado o parâmetro da Constituição Federal, portanto, a simetria. Não procederia, assim, a alegação de vício formal decorrente do vício de iniciativa privativa do Poder Executivo. No tocante ao vício material, ressaltou que, consoante disposto no art. 144, § 4º, da CF (“Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”), as polícias civis seriam dirigidas por delegados de carreira. Não caberia, portanto, a inobservância da citada qualificação, nem a exigência de que se encontrassem no último nível da organização policial.[iii]
Em outro importante e recente julgado (19/08/2015), o Ministro Roberto Barroso entendeu que não é materialmente inconstitucional a instituição de requisitos para que o Chefe da Polícia Civil seja da classe mais elevada da carreira. Contudo, entendeu inconstitucional a EC nº 86/2013, do Estado de Rondônia, por vício de iniciativa, considerando que o chefe do Poder Executivo tem competência privativa em relação à matéria.
A seguir a ementa do julgado:
Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. EMENDA CONSTITUCIONAL ESTADUAL. ESCOLHA DO DELEGADO-CHEFE DA POLÍCIA CIVIL. VÍCIO DE INICIATIVA. 1. Não é materialmente inconstitucional a exigência de que o Chefe da Polícia Civil seja delegado de carreira da classe mais elevada, conforme nova orientação do STF. Precedente: ADI 3.062, Rel. Min. Gilmar Mendes. 2. Todavia, a instituição de requisitos para a nomeação do Delegado-Chefe da Polícia Civil é matéria de iniciativa privativa do Poder Executivo (CRFB/1988, art. 61, § 1º, II, c e e), e, desta forma, não pode ser tratada por Emenda Constitucional de iniciativa parlamentar. Precedentes. 3. Pedido julgado procedente, para declarar a inconstitucionalidade formal da EC nº 86/2013, do Estado de Rondônia, por vício de iniciativa.[iv]
Todavia, nota-se, claramente, que o ilustre ministro se equivocou em relação ao atual entendimento do próprio STF, pois fez menção a ADI 3.062, julgada em 2009, de relatoria do Min. Gilmar Mendes, sendo certo que o plenário do STF, em julgado de dezembro de 2014, entendeu inconstitucional exigência de requisitos não previstos na CF/88 para nomeação do Delegado Chefe da Polícia Civil.
Desta forma, de acordo com o exposto acima, acredita-se que a atual posição do STF, muito embora haja certa confusão, seja no sentido de que qualquer Delegado de Polícia, seja ou não da classe mais elevada da carreira, tenha ou não tempo de serviço mínimo, possa ser Chefe da Polícia Civil, considerando que a Constituição Federal não fez distinção alguma nesse sentido.
Por óbvio, considerando a importância do cargo para a consecução dos fins da Polícia Judiciária, assim como a complexidade inerente à função, não é crível que o chefe do Poder Executivo estadual nomeie um Delegado recém ingresso na carreira, pois não teria a experiência necessária para bem executar a tarefa. Contudo, a possibilidade existe e a tendência é que o STF declare inconstitucionais normas de Constituições estaduais que definam critérios que não os estabelecidos na própria Constituição Federal.
LISTA TRÍPLICE E A AUTONOMIA DA POLÍCIA JUDICIÁRIA
De alguns anos para cá, visando possibilitar certa autonomia à Polícia Civil, em muitos Estados-membros os sindicatos respectivos têm tentado realizar eleição com indicação de lista tríplice para o cargo de Delegado Geral de Polícia, a exemplo dos Estados do Pará, Piauí, Goiás, Paraíba, São Paulo, além da própria Polícia Federal, entre outros. Salienta-se que tal mecanismo visa obter melhor gerenciamento da Polícia Judiciária, desvinculando-a das vicissitudes e desmandos por parte do Poder Executivo.
A forte cultura de ingerência do Poder Executivo sobre a Polícia Judiciária Civil persiste ao longo dos anos, justamente pela adoção histórica de um modelo subserviente acostumado aos desmandos do governante no poder.
Há argumentos diversos para a manutenção da vinculação hierárquica das polícias ao Poder Executivo, sendo o tema disciplinado de forma peremptória inclusive no texto constitucional, nos termos do § 6º do Art. 144, o qual afirma que “As polícias militares e corpo de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios”.
Os argumentos principais para essa subordinação vão desde a necessidade de ser ter uma força armada sob pleno controle do Poder Executivo estadual, evitando possíveis atos subversivos e atentados à democracia, como ocorreu durante o Golpe Militar de 1964, até a possibilidade de acionamento rápido das forças policiais para eventuais distúrbios civis, assim compreendida na sua finalidade de manutenção da ordem pública.[v]
Finalmente, outro fator considerável é que as Políticas Públicas de Segurança são atribuições do Poder Executivo, o qual na consecução de seu mister deve estabelecer metas e diretrizes gerais para que os órgãos que estão diretamente subordinados atinjam seu intento.[vi]
Neste momento, no entanto, cumpre separar bem os papeis das duas principais forças policiais do país, de acordo com suas finalidades precípuas.
À Polícia Militar, cabe o policiamento ostensivo e a manutenção da ordem pública (§ 5º, do Art. 144 da CF/88). Desse modo, sempre que necessário esta força policial deve intervir agindo ora como polícia ostensiva, na prevenção da criminalidade, realizando patrulhamentos constantes e, caso necessário, prisões em flagrantes, em atividade tipicamente policial, ora na manutenção da ordem pública, intervindo em distúrbios civis, auxiliando também os demais órgãos do Poder Executivo quando se faz necessária a presença da polícia para garantir a autoexecutoriedade dos atos administrativos, como, por exemplo, nas ações de reintegração de posse, fiscalização de postura etc.
Entretanto, em sentido diametralmente oposto, às Polícias Judiciárias Civis cabe a apuração das infrações penais e a função de Polícia Judiciária.
Essas incumbências não têm, ou não deveriam ter, intromissão por parte do Poder Executivo, pois a função advém da própria lei, sendo todos os atos a serem praticados pelos seus servidores, aí incluídos Delegados de Polícia, Agentes, Escrivães e Peritos, previstos no Código Penal, Código de Processo Penal e demais leis extravagantes. Assim, não pode o Governador ou Secretário de Segurança Pública decidir qual crime deverá ser investigado, ou quem poderá ser objeto de investigação, inclusive tal conduta pode se tipificar como crime a depender do caso concreto.
Nota-se que, pelas funções de cada Instituição Policial, a Polícia Militar está diretamente vinculada às ordens do Poder Executivo, pois a distribuição do efetivo, a maneira em que o policiamento ostensivo é realizado, o auxílio que a força policial presta aos demais órgãos da Administração, reflete diretamente nas Políticas de Segurança Pública.
No entanto, o dever de agir e investigar da Polícia Judiciária Civil deve ser realizado independentemente de quaisquer ordens hierárquicas, pois advém da própria lei, não tendo qualquer interferência do Chefe do Poder Executivo Estadual.
Não se quer dizer com o disposto acima a maior ou menor relevância das finalidades de cada Instituição Policial, pois ambas são igualmente importantes para a pacificação social, apenas é notória a distinção de atribuições, sobretudo no modelo brasileiro de polícia, com separação clara do dever de cada uma, muito embora convirjam em determinadas atribuições.
Assim, a investigação policial deve pautar-se por critérios técnicos e especializados, auxiliado por uma ciência pericial em constante evolução, com vistas a solucionar as infrações penais, definindo com clareza sua autoria, possibilitando, desse modo, substrato para a deflagração da futura ação penal e continuidade da persecução criminal, durante a fase processual.
Inegável que quanto mais livre de interferências políticas, melhor será o resultado. Ante o exposto, necessário afirmar que em um quadro ideal se faz imperativo a aprovação de uma Emenda Constitucional retirando a subordinação da Polícia Judiciária Civil ao Poder Executivo Estadual (A PEC 202/16 está em tramitação e pretende transformar a Polícia Civil autarquia) , assegurando independência funcional, inexistência de subordinação técnica, financeira, nos moldes em que ocorre, por exemplo, com o Ministério Público e a Defensoria Pública, que apesar de serem órgãos do Poder Executivo (há divergência nessa classificação, alguns doutrinadores os consideram órgãos autônomos, desvinculados de quaisquer dos Poderes), possuem autonomia funcional e administrativa e elaboram sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na Lei de Diretrizes Orçamentárias.[vii]
Por todas essas razões, enquanto não aprovada emenda constitucional modificando o quadro atual, bastante razoável que a própria Polícia Judiciária defina, ao menos, uma lista de Delegados que a instituição julga capaz de melhor geri-la, com vistas a aprimorar cada vez mais o serviço prestado à população, prestigiando a autonomia do órgão.
Não se vislumbra impedimento a falta de legislação determinando que o Chefe do Poder Executivo assim proceda, pois corresponde a um ato de notória sobriedade e compromisso extremo com a atividade fim da Polícia Judiciária e ainda com o princípio da eficiência, bem como com a gestão democrática do órgão. Ademais, a nomeação do Procurador Geral da República, muito embora não tenha previsão constitucional nesse sentido, é de forma contumaz realizada entre os indicados pelos Procuradores do MPF desde o ano de 2003.[viii]
Destarte, dentre as tantas dificuldades que permeiam a Segurança Pública, no que concerne ao âmbito da Polícia Judiciária Civil, nota-se que a falta de liberdade para se autogerenciar financeira e administrativamente impede muitos avanços. Portanto, obedecidos os critérios estabelecidos pela Constituição Federal, salutar que as Polícias Judiciárias Civis dos Estados-membros adotem a postura de indicar os nomes dos Delegados julgados mais competentes como gestor máximo do órgão.
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Sobre o autor: Paulo Reyner é atualmente Delegado de Polícia Civil e ex-Policial Militar. Graduado em Direito pela Universidade do Distrito Federal – UDF, Especialista em Ciências Criminais e Especialista em Políticas e Gestão em Segurança Pública.
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[i] LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 18. ed. rev., atual, e ampl. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 941.
[iii] Informativo 771/2014-STF
[iv] ADI 5075 / DF – DISTRITO FEDERAL
[v] BRASIL. Felipe Moura. O Perigo e a falácia da desmilitarização da polícia. Disponível em: < http://veja.abril.com.br/blog/felipe-moura-brasil/2014/04/22/o-perigoea-falacia-da-desmilitarizacao-da-policia/>. Acesso em 15 de mar. De 2015.
[vi] MORAES, Alexandre de. Curso de Direito Constitucional. – 24. ed. – 2. Reimpr. – São Paulo: Atlas, 2009.
[vii] Parte do texto do presente trabalho íntegra dissertação de nossa autoria a respeito da autonomia gerencial e financeira da Polícia Judiciária Civil, disponível no site Jus Brasil, em < http://preyner.jusbrasil.com.br/artigos/307653895/autonomia-gerencial-e-financeira-a-policia-judiciaria-civil>
Ressalta-se que há Projeto de Emenda Constitucional em trâmite para tornar a Polícia Judiciária Civil autarquia, com mandato pré-fixo para os Delegados Gerais. Conforme notícia veiculada pela Câmara dos Deputados, disponível em: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/SEGURANCA/510178-PEC-CONFERE-AUTONOMIA-ADMINISTRATIVA-E-FINANCEIRA-AS-POLICIAS-CIVIS.html>
Não em função da confusão do STF, mas infelizmente os Governtes nomeam pessoas incompententes para o cargo, com o mínimo de conhecimento em administração pública e de pessoas, em se tratando de polícia civil, deveria ser levado em conta a dedicação, claro a experiência, mas principalmente as qualificações destinadas ao serviço policial, não é o que ocorre, em geral, são critérios meramente políticos. Acho q deveriam haver uma regulamentação para a ocupação deste cargo sim, talvez assim as polícias teriam diretores, administradores mas coerentes.
Excelente comentário Bruna, realmente falta coerência na nomeação de cargos importantes dentro da Polícia Civil, pois muitas vezes são utilizados critérios políticos e não técnicos. Por isso a necessidade da lista tríplice, afinal, quem melhor que os próprios servidores para decidirem quem são os Delegados mais competentes para assumir o cargo?