Com o avanço da tecnologia nas comunicações, sobretudo envolvendo a transmissão de dados telemáticos, o trabalho da Polícia tem se tornado mais dificultoso, pois o uso de aplicativos com criptografia, mormente o tipo de criptografia usado por empresas bilionárias do ramo, impede o acesso das informações trocadas entre os usuários.
Ciente dessa dificuldade, criminosos têm se valido dessas ferramentas para articular seus crimes de maneira incólume.
De início, impende dizer que não há direito absoluto no Brasil, pois nem mesmo a vida, bem supremo do ser humano, é inviolável, na medida em que a Constituição e as leis do país autorizam a pena de morte em certas circunstâncias.[1]
Partindo dessa premissa, não há se falar em direito absoluto à privacidade ou intimidade. A legislação autoriza, de maneira bastante clara, a interceptação de dados telemáticos (parágrafo único do art. 1º da Lei 9.296/96); o que não há é viabilidade técnica para implementar a interceptação em determinados casos. Os dados são até encaminhados para a Polícia, contudo, não se consegue visualizar seu conteúdo em razão da criptografia.
Um dos aplicativos que usa criptografia é o popular WhatsApp. Visando dar efetividade às ordens judiciais e à aplicação da lei brasileira, alguns juízes têm determinado o bloqueio do sinal do Aplicativo WhatsApp em todo o país, considerando que mesmo as gigantes da tecnologia mundial devem obedecer às leis do país, afinal, lucram, de maneira direta ou indireta, com a venda do produto aqui.
Em um dos casos que houve determinação judicial de bloqueio do sinal do aplicativo, o STF[2] suspendeu a decisão judicial, argumentando que era desproporcional e por desrespeito ao art. 5º, IX, da CF/88 c/c do art. 3º, I, da Lei n.º 12.965/14 (Marco Civil da Internet) que assegura a liberdade de comunicação; contudo, reafirmou a necessidade de melhor estudar se é ou não possível quebrar a criptografia, bem como a obrigatoriedade de a empresa responsável revelar o conteúdo das mensagens.
A grande questão que levou o STF a modificar a decisão judicial de primeira instância, certamente, foi a proporcionalidade da medida, pois, no caso concreto, o aplicativo teve seu uso bloqueado para todos os brasileiros, prejudicando milhares de pessoas. Muito embora a proporcionalidade da decisão revista possa ser justificada pela ineficácia de medidas outras para coagir a empresa à obedecer a determinação judicial.
O certo é que a cada novo bloqueio há uma enxurrada de manifestações críticas nas redes sociais, por vezes, escritas por pessoas que desconhecem a real importância do controle judicial e policial, para fins de investigação criminal, do conteúdo de dados trocados entre criminosos. Apenas a título exemplificativo, imagine-se um sequestro em pleno andamento, em que os criminosos só utilizam mensagens instantâneas de aplicativos com criptografia. Se mostraria razoável a recusa em fornecer os dados à polícia? Ou ainda, assaltantes que planejam seus crimes por meio de aplicativos dessa natureza. Também podemos citar os inúmeros casos em que traficantes de drogas, traficantes de pessoas, estupradores etc. se valem dessa espécie de tecnologia para dificultar as investigações.
Assim, sejam nos exemplos acima citados ou em tantos outros, sobretudo envolvendo organizações criminosas, a ação colaborativa das empresas se impõe, não podendo o Estado brasileiro e, por consequência as vítimas desses crimes, ficar à mercê de meros interesses econômicos, sem que a Polícia possa exercer o poder-dever de investigar crimes e sua autoria.
A empresa proprietária do aplicativo supra (WhatsApp) tem se escusado de obedecer às determinações judiciais argumentando que não tem sede no país, portanto, não estaria sujeita às leis brasileiras, mesmo tendo 100 milhões de usuários no Brasil. Alega, ainda, que não tem acesso aos dados criptografados e nem sequer guarda em seu banco de dados o conteúdo das mensagens trocadas entre os usuários.
Soa inverossímil essa alegação, em razão de o usuário, sabidamente, quando perde ou tem o aparelho celular subtraído, poder habilitar o recurso de backup das conversas, mesmo no novo aparelho celular. Isto significa que a empresa tem sim um sistema de armazenamento das mensagens dos usuários, mas talvez por interesses comerciais (quebra da confiança do consumidor), não fornece os dados requisitados.
Entendemos que o país não pode ficar à mercê do poderio econômico dessas empresas, nem tampouco do crime organizado. Empresas que não obedecem a legislação brasileira nem sequer deveriam ser autorizadas a funcionar no país.
Por outro lado, no mesmo caminho trilhado pela Inglaterra, o governo brasileiro tem estudado a possibilidade de tornar proibido o uso de tecnologia de criptografia no território nacional. Contudo, isso poderia causar a fuga das empresas de tecnologia, que continuariam a prestar serviços aos brasileiros sem sede no Brasil.[3]
Interessante notar que nos “termos de uso” do aplicativo em questão, há expressa proibição do seu uso ilícito. Vejamos:[4]
Os nossos Serviços têm que ser acessados e utilizados somente para fins lícitos, autorizados e aceitáveis. Você não usará (ou ajudará outras pessoas a usar) nossos Serviços: (a) de forma a violar, apropriar-se indevidamente ou infringir direitos do WhatsApp, dos nossos usuários ou de terceiros, inclusive direitos de privacidade, de publicidade, de propriedade intelectual ou outros direitos de propriedade; (b) de forma ilícita, obscena, difamatória, ameaçadora, intimidadora, assediante, odiosa, ofensiva em termos raciais ou étnicos, ou instigue ou encoraje condutas que sejam ilícitas ou inadequadas, inclusive a incitação a crimes violentos; (c) envolvendo declarações falsas, incorretas ou enganosas; (d) para se passar por outrem; (e) para enviar comunicações ilícitas ou não permitidas, mensagens em massa, mensagens automáticas, ligações automáticas e afins; ou (f) de forma a envolver o uso não pessoal dos nossos Serviços, a menos que esteja autorizado por nós.
Assim, incompreensível a recusa da empresa em colaborar com as autoridades brasileiras, possibilitando o esclarecimento de crimes, uma vez que seus usuários já estão cientes do dever de uso lícito do aplicativo. Além de, evidentemente, o uso de tecnologias no pais estar sujeito às leis brasileiras.
Possíveis alternativas para investigar mensagens criptografadas
Se, contudo, empresas dessa natureza não disponibilizarem o acesso aos dados requeridos, como vem fazendo, vislumbram-se algumas alternativas possíveis. É certo que o acesso às mensagens criptografadas não se dá em razão da impossibilidade técnica, não jurídica, considerando que haja ordem judicial para tanto.
Desse modo, pode a Polícia usar de criatividade para remediar essa situação; cotejam-se algumas possibilidades:
Determinação para bloqueio do sinal do aplicativo – Visando obstaculizar a troca de mensagens entre criminosos ou investigados por meio de mensagens criptografadas, pode o Delegado de Polícia representar perante o juízo competente que determine à Operadora de Telefonia, se este for o meio viável, o bloqueio do sinal do aplicativo para determinado investigado. É certo que se trata de uma alternativa temporária, para forçar o investigado a usar os meios tradicionais de comunicação por telefonia móvel, como mensagens de texto e ligações, contudo, nada obsta que ele adquira outra linha, pré-paga ou não, e instale novamente o aplicativo, continuando a se comunicar por meio dele. Todavia, em situações extremas pode auxiliar as investigações.
Autorização judicial para clonar o chip do investigado – outra maneira que se mostra possível é a representação para que a Autoridade Judiciária autorize a Operadora de Telefonia emitir outro chip (SIM CARD) com a mesma linha do investigado, dessa forma, poderia o Delegado de Polícia instalar o mesmo aplicativo, e com o recebimento do código de verificação de segurança, receber as mensagens transmitidas entre o investigado e seus interlocutores, concomitantemente ao momento em que ele as recebe, em uma espécie de espelhamento.
Download das mensagens pretéritas – pressupondo que a Polícia já tenha autorização judicial para interceptação telefônica e dos dados telemáticos, como se tem acesso em tempo real às mensagens e ligações realizadas pelo investigado interceptado, conforme visto, as mensagens já enviadas ficam armazenadas no banco de Backup do servidor do aplicativo, assim, quando o aplicativo é instalado e reinstalado há opção de realizar o download das mensagens. Se a Polícia tiver o controle dessa instalação, pode ter acesso às mensagens enviadas e recebidas durante certo período.
Instalação de aplicativo-espião – por fim, uma alternativa que se mostra bastante interessante é a instalação de aplicativos-espião no aparelho celular do investigado, o que possibilita o espelhamento das mensagens enviadas e recebidas e ainda outros recursos específicos, a depender o programa espião instalado. Já existem alguns programas capazes de fazer isso, geralmente usados para controle dos pais sobre o conteúdo das mensagens dos filhos. Contudo, na impede que, com a devida autorização judicial, seja instalado um programa dessa natureza no aparelho celular, tablet ou computador do investigado. O grande problema é que esses programas são pagos e, na maior parte dos casos, teria que haver uma contratação entre a Polícia Judiciária e as empresas responsáveis.
Entretanto, perfeitamente aplicável nesse caso a dispensa de licitação, nos termos do § 1º do art. 3º da LCO, com redação dada pela Lei n.º 13.097/15. Vejamos a previsão legal:
- 1o Havendo necessidade justificada de manter sigilo sobre a capacidade investigatória, poderá ser dispensada licitação para contratação de serviços técnicos especializados, aquisição ou locação de equipamentos destinados à polícia judiciária para o rastreamento e obtenção de provas previstas nos incisos II e V. (Grifo nosso).
Outra problemática a ser enfrentada é necessidade de acesso físico ao aparelho celular para instalar o aplicativo espião, porém, com habilidade pode ser remediada. Alguns softwares possibilitam a habilitação dos seus recursos por acesso remoto, ou seja, sem que haja necessidade de contato físico com o aparelho celular, nesse caso, seria enviado uma espécie de vírus ao aparelho.
De toda sorte, todas as alternativas exemplificadas podem funcionar em tese, pois não foram testadas, contudo, não podem ser consideradas ilegais caso haja a devida autorização judicial para a sua implementação, angariada no princípio da proporcionalidade, na sua vertente proibição de proteção deficiente por parte do Estado, sobretudo no poder-dever de investigar crimes e sua autoria.
De mais a mais, salienta-se que em tempos atuais não se mostra possível realizar de modo eficaz investigação sem o uso da tecnologia, sendo este o meio mais utilizado por criminosos para a consecução de seus crimes. Impensável, desse modo, que o Poder Judiciário se esquive de determinar a obediência das leis vigentes no país àquelas empresas que prestam seus serviços em território nacional.
Por outro lado, o ideal seria a regulamentação legal do tema, com imposição do dever de colaboração das empresas de tecnologia com a investigação criminal, bem como imposições de sanções gradativas de suspensão e paralisação do fornecimento de serviços no país em caso de negativa, até mesmo de índole administrativa pelas Agências Reguladoras do setor.
Enquanto isso não ocorre, certamente integrantes do crime organizado tem mais um aliado a seu favor. E para isso, sequer necessitaram de arca com custos altos da transmissão de dados criptografados, uma vez que as empresas já fizeram isso para eles.
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Sobre o autor: Paulo Reyner é Delegado de Polícia Civil e ex-Policial Militar. Graduado em Direito pela Universidade do Distrito Federal – UDF, Especialista em Ciências Criminais e Especialista em Políticas e Gestão em Segurança Pública. Autor do livro Peças e Prática da Atividade Policial.
[1] Vide art. 303, § 2º, da Lei n.º 9.614/98 sobre o abate de aeronaves hostis, e ainda a pena de morte em caso de crimes de guerra (inciso XLVII, do art. 5º, da CF/88 e art. 55 e 56 do CPM)
[2] STF. ADPF 403 MC/SE – Sergipe. Rel. Min. Edson Fachin. Julgado em 19/07/2016.
[3] OLIVEIRA, André. Caso WhatsApp no Brasil é faceta piorada de conflito global sobre criptografia. Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2016/07/20/politica/1468969716_416501.html>. Acesso em 05/10/2016.
[4] Informação legal do WhatsApp. Disponível em: <https://www.whatsapp.com/legal/?l=pt_br>. Acesso em: 20.10.2016.
Boa explanação sobre a dificuldade em investigar com aplicativos criptografados, mas considero mais grave ainda as decisões judiciais, com todo respeito, das quais discordo, posicionando pela ilegalidade de acesso aos dados já constantes em celular apreendido. Ao meu entender não há violação das comunicações, pois é uma situação diversa, visto que a informação já consta no aparelho como se fosse uma carta escrita e recebida ou enviada, a qual permaneceu gravada e serve sim como prova de crimes. Diversamente seria se mediante a apreensão do aparelho, passassem os agentes públicos a usar o aparelho para manter contato fingindo ser o suspeito, nesta hipótese sim cogitaria a ilegalidade. No mais, acredito como já exposto que existem ferramentas e meios disponíveis para a interceptação em investigações, o que não se tem é a boa vontade da empresa, o que por isso deveria ficar sujeita a punições (multas e outras).