Por Tilly Agra Oliveira Marreiro e
Paulo Reyner Camargo Mousinho
A perplexidade às vezes rodeia o mundo jurídico. Foi exatamente com essa percepção que a comunidade jurídica tomou conhecimento da decisão judicial que nos autos de um processo de improbidade administrativa decretou a perda do cargo de um Delegado de Polícia do Estado de São Paulo, porque Juiz e Promotor discordaram da sua posição jurídica.
Conforme noticiado, o juízo da Comarca de Mogi das Cruzes manifestou-se pela perda do cargo da Autoridade Policial em virtude de ter feito adequação típica no § 3º do art. 33 da Lei 11.343/06, e não no caput do mesmo artigo, quando lhe foi apresentada uma mulher que teria levado ao seu companheiro 40 gramas de maconha em um presídio. Assim, em razão da tipificação feita, foi lavrado um Termo Circunstanciado de Ocorrência e não Auto de Prisão em Flagrante.
Confira alguns trechos da sentença proferida pela douta Autoridade Judiciária:
Assim, ainda que assegurada a liberdade de convicção do Delegado de Polícia, ele não se torna uma autoridade irresponsável pelos atos que pratica. A liberdade de convicção serve como garantia para que decida conforme o Direito, sem temores suscitados por pressões de ordem política.
(…)
Percorrido o iter, vê-se que o réu, irrefragavelmente, com seu agir doloso, violou os deveres de honestidade (profissional, in casu) e de lealdade institucional, tendo deixado de praticar, indevidamente, ato de ofício (a lavratura da prisão em flagrante por tráfico de entorpecente).
(…)
ASSIM, por todo o exposto e à vista do mais que dos autos consta, JULGO PROCEDENTE a pretensão do MINISTÉRIO PÚBLICO DE SÃO PAULO, razão pela qual condeno ***** pela prática de ato de improbidade administrativa atentatória aos princípios da Administração Pública (art. 11, caput , e inciso II, da Lei 8.429/92) às seguintes sanções: i) perda de seu cargo; ii) pagamento de multa civil equivalente a vinte vezes o valor de sua remuneração à época dos fatos; iii) proibição de contratar com o Poder Público e dele receber incentivos fiscais ou creditícios pelo prazo de três anos.
Após assistirmos ao Juiz Federal responsável pelo julgamento dos casos da Operação Lava-Jato defender em cadeia nacional em sessão plenária no Senado Federal a retirada do PL (280/16) que altera a Lei de Abuso de Autoridade do chamado crime de hermenêutica, ou seja, que interpretações jurídicas diferentes ou minoritárias não sejam consideradas criminosas, justamente por tolher a independência funcional de Juízes e Promotores, soa inverossímil e perigosa decisão judicial em sentido totalmente oposto no caso envolvendo o Delegado de Polícia.
A perplexidade deve-se, sobretudo, na análise do raciocínio aplicado pelo julgador que decretou a perda da função do Delegado, pois consoante o entendimento do eminente Magistrado, muito embora o Delegado de Polícia tenha independência funcional, semelhantemente a Juízes e Promotores, isso não impede que perca a função em razão de defender sua legítima convicção jurídica, praticando o ato que lhe seja correspondente.
Indaga-se: o mesmo raciocínio deve ser aplicado a denúncias e sentenças? Ora, porque a depender do raciocínio utilizado na sentença que decretou a perda da função, caso ela seja reformada pelo Tribunal (e muito provavelmente será), vez que adotou tese minoritária, devem o juiz e o promotor responder por ato de improbidade administrativa, por terem violado os princípios administrativos?!
Nos termos da referida sentença de primeiro grau, todas as próprias decisões do juiz prolator que forem reformadas, porque reconhecido erro in procedendo ou in judicando, deveriam originar processo por ato de improbidade.
Da máxima vênia, absurdos e nefastos tanto o próprio ajuizamento da ação quanto a decisão judicial. Isto porque vai de encontro a texto legal expresso, estatuído no §6º do art. 2º da Lei 12.830:
6o O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias.
Ressalta-se que, antes mesmo de explicitada na citada norma, a independência funcional do Delegado de Polícia decorria do nosso próprio sistema processual penal, que, para tanto, dispõe de dispositivos para correção de eventual equívoco no enquadramento típico do fato.
Como sabido, o Ministério Público, titular da ação penal, conforme prevê o art. 129, I, da Constituição Federal, poderá ofertar denúncia com capitulação diversa da atribuída inicialmente ao fato pela Autoridade Policial. Pode, inclusive, promover o arquivamento dos autos de inquérito policial, caso discorde do indiciamento e não vislumbre justa causa para o início da ação penal.
O juiz, por sua vez, poderá discordar da promoção de arquivamento e remeter os autos do inquérito ao Procurador-Geral de Justiça, como estabelece o art. 28 do CPP, ao que se chama de princípio da devolução.
Caso receba a denúncia e prossiga com a instrução criminal, o magistrado ainda pode, valendo-se do instituto da emandatio libelli, dar capitulação diversa ao fato, discordando da tipificação do MP, e assim julgar o réu, de acordo com o previsto no art. 383 do CPP.
Desse modo, nota-se que existe um verdadeiro controle no que tange à capitulação penal de um ou mais fatos, restando saber a quem compete a palavra final. Cremos que nem mesmo ao juiz, tendo em vista que a capitulação pode ser revista pelo tribunal de segundo grau, bem como pelos tribunais superiores. Assim, a “palavra final” dependerá da ocasião e até mesmo do grau de inconformismo do réu, que poderá recorrer da sentença em busca de nova classificação.
Em nenhum dos casos de modificação do enquadramento típico, por óbvio, há sanção para quem o fez de modo “equivocado”, não se podendo fazer uso de gambiarras jurídicas para criar punições não previstas em lei e impor determinado posicionamento acerca de uma conduta.
Assim, diferentemente do que ocorre com as outras carreiras responsáveis pela persecução penal, colocou-se em risco a independência funcional do Delegado de Polícia. Mais ainda, a vigorar a tese da citada decisão judicial, todas as vezes em que houver discordância entre a tipificação de determinada conduta, haverá risco do ajuizamento de ação de improbidade.
Salienta-se, ainda, que a discordância na tipificação de condutas é tema corriqueiro tanto academicamente quanto no próprio bojo de ações penais, não raro havendo modificações diametralmente opostas do entendimento originário.
Vejamos o exemplo de determinada lesão corporal de natureza leve, a depender das circunstâncias do caso concreto, com análise do dolo do agente, poderá ser feito enquadramento típico tanto no art. 129, caput, do CP (lesão corporal), quanto no art. 121 c/c art. 14 II (homicídio tentado), ambos do mesmo diploma normativo . O primeiro origina um simples Termo Circunstanciado de Ocorrência, enquanto o segundo, um Auto de Prisão em Flagrante, com o consequente julgamento perante o Tribunal do Júri.
Nesse caso, nota-se que, em última análise, a tipificação fica a cargo até mesmo de juízes leigos (jurados), que podem desclassificar o homicídio tentado para lesão corporal leve, havendo, por conseguinte, “independência funcional” para representantes da sociedade que sequer precisam fundamentar sua decisão.
Por oportuno mencionar, os próprios tribunais superiores, nomeadamente STF e STJ, frequentemente discordam em temas relevantíssimo do Direito Penal e Processual Penal, a exemplo da aplicabilidade do princípio da insignificância na própria Lei Antidrogas. Há, até mesmo, discordância entre as próprias turmas do STF. [i]
Lembra-se que a aplicação desse princípio exclui a tipicidade material do fato, conduzindo à exclusão do primeiro substrato do crime. Dito de outro modo, sequer punição haverá. Assim, surge a dúvida: a tese que sair vencedora deve impor aos minoritários ilícito civil por ato de improbidade? Evidentemente que não.
Poderíamos citar diversos outros exemplos dentro da própria Lei 11.343/06, cuja divergência marca as Cortes Superiores, como o tráfico privilegiado para as “mulas”; a evolução na aplicabilidade das penas restritivas de direitos no tráfico de drogas, entre tantos outros.[ii]
A discordância de entendimento entre autoridades que militam no Direito Penal jamais pode ser fundamento para punições, sobretudo de índole tão drástica como o é a perda da função pública.
Ao contrário, da dialética e do antagonismo de opiniões que nasce o equilíbrio do Direito.
Ressalta-se que a doutrina e jurisprudência pátrias são assentes no sentido de afastar a punição do parecerista por manifestar sua opinião jurídica. Assim entende o STF:
(…) salvo demonstração de culpa ou erro grosseiro, submetida às instâncias administrativo-disciplinares ou jurisdicionais próprias, não cabe a responsabilização do advogado público pelo conteúdo de seu parecer de natureza meramente opinativa” (MS 24.631/DF, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ de 1º/2/08).
Nesse mesmo prisma, já entendeu o STJ que para que se configure ato de improbidade administrativa que viole os princípios administrativos, exige-se um plus, ou seja, uma conduta verdadeiramente grave e prejudicial à Administração, sob pena se tornar supérflua a ação de improbidade. Desse modo, nem mesmo toda ilegalidade é sinônimo de improbidade, não se podendo fazer aplicação surda e cega do art. 11, da Lei 8.429/92. (STJ. 1ª Turma. REsp 1414933/RJ, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 26/11/2013)
De mais a mais, todo o entendimento jurídico atual se volta contra o ilícito de hermenêutica, seja ele de natureza penal, civil ou administrativa. De certa forma, é tolher a liberdade de expressão jurídica do profissional de possuir entendimento contrário ao de seus pares.
O Delegado de Polícia faz o primeiro filtro na aplicação da lei penal, não vinculando, como dito, o Ministério Público nem o Poder Judiciário. As próprias decisões judiciais frequentemente sofrem reformas quando da análise de recursos. Assim é o Direito: dinâmico e mutável para que possa acompanhar a evolução das circunstâncias sociais.
Por fim, ficamos com a sugestão do insigne Juiz Sergio Moro, quando apresentou ao Senado a seguinte redação para o PL 280/16: “Não configura crime previsto nesta lei a divergência na interpretação da lei penal ou processual ou na avaliação de fatos e provas”. Acrescentamos, apenas, a não incidência, igualmente, em ilícito civil.
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Sobre o autor: Tilly Agra Oliveira Marreiro é Delegado de Polícia Civil do Estado do Amapá, especialista em Ciências Criminais e colaborador do site Justiça & Polícia – www.juspol.com.br.
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Sobre o autor: Paulo Reyner é Delegado de Polícia Civil e ex-Policial Militar. Graduado em Direito pela Universidade do Distrito Federal – UDF, Especialista em Ciências Criminais e Especialista em Políticas e Gestão em Segurança Pública. Autor do livro Peças e Prática da Atividade Policial e administrador do site Justiça & Polícia.
[i] No sentido de acolher o princípio da insignificância: HC 91.074/SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, julgado em 19/08/2008, DJe 19/12/2008. No sentido de rejeitar: HC 91759/MG, Rel. Min. Menezes Direito, Primeira Turma, julgamento em 09/10/2007, DJe 30/11/2007.
[ii] Em interessante artigo, explorando a divergencia entre STF e STJ há o artigo disponível em:< http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,divergencias-jurisprudenciais-entre-o-stf-e-stj-na-aplicacao-do-principio-da-insignificancia,37143.html>
Instituído no Brasil o delito de hermenêutica punido através da Lei de improbidade administrativa Crime de mão própria, exige especial característica do sujeito ativo na condição de intérprete da norma Basta não ser integrante do judiciário ou mp…
Bastante preocupante essa decisão judicial. Torcemos para que as instâncias superiores a reforme.
Nenhum poder tem o direito de tolher a independência funcional seja de que carreira pública for.
Bem lembrado pelos autores a polêmica quanto a lei de abuso de autoridade em tramitação no Congresso Nacional cujo ponto de maior discordância dos aplicadores do direito é justamente a possibilidade de ser punido por adotar uma posição jurídica minoritária (abrindo a possibilidade para inúmeras ingerências políticas na decisão do profissional da área jurídica).