Mais de 120 mortes violentas desde o início do mês (foram somente 4 em Janeiro/2017), 100 de milhões de reais em prejuízos para o comércio local, incontáveis roubos, furtos e outros crimes, além da enorme sensação de insegurança, demonstração de fragilidade, despreparo e desorganização dos gestores no trato com a Segurança Pública do estado do Espírito Santo.
O estado capixaba, do qual nos lembramos inicialmente pelas belas praias de Guarapari, está cada vez mais cedendo espaço para um cenário de terror estampado nos jornais diários, devido à ausência de policiamento que deveria estar sendo realizado pela Polícia Militar, a qual se encontra aquartelada, acautelada pelos familiares destes.
Diante desse quadro caótico, sem ceder às exigências dos familiares dos Policiais Militares, coube ao Governo do Espírito Santo solicitar auxílio das Forças Armadas para realização das tarefas comumente realizada pelos militares estaduais.
Ainda que diversas questões possam ser debatidas em torno desta crise, nos limitaremos, no presente artigo, a analisar somente pontos de índole jurídica da intervenção militar das Forças Armadas para assumir o controle operacional da Segurança Pública estadual.
Não é novidade o emprego das Forças Armadas no reforço e atuação conjunta com os órgãos de Segurança Pública no policiamento ostensivo, como ocorreu nas últimas Olimpíadas e, mais recentemente, em Natal/RN durante a retomada de determinado presídio estadual.
Entretanto, a novidade, no presente caso, consiste na atuação dissociada dos órgãos de Segurança Pública, notadamente da Polícia Militar, pois, foi repassado o Controle Operacional da Segurança Pública do estado do Espírito Santo às Forças Armadas, situação até então inédita desde a redemocratização do país.
Desse modo, ante as más lembranças do período ditatorial vivenciado pelo Brasil, a intervenção militar dessa forma mais incisiva, demanda algumas ponderações e questionamentos jurídicos, que passaremos a tratar doravante.
Qual o fundamento legal para emprego das Forças Armadas no Espírito Santo?
Bem, nos termos do art. 142 da CF/88 as Forças Armadas destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais, portanto, a autuação precípua do Exército, Aeronáutica e Marinha é para a defesa contra ameaças externas ou garantia de funcionamento normal dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, sob o comando supremo do Presidente da República.
No entanto, o § 1º do citado artigo constitucional outorgou à Lei Complementar esmiuçar diretrizes gerais de organização, preparo e emprego das Forças Armadas. Assim, coube à Lei Complementar n.º 97/1999 permitir a atuação das FA’s em operações em tempo de paz, na garantia da lei e da ordem na segurança pública (art. 13), inclusive, em atuação conjunta com os órgãos de Segurança Pública e, por fim, em atuação episódica, excepcional e temporária, assumindo o controle operacional da segurança pública.
Analisando os artigos 13, 15, 16 da Lei em comento, podemos sintetizar os requisitos legais cumulativos para o emprego das Forças Armadas em tarefas próprias de órgãos de segurança publica da seguinte forma:
- Ato do Presidente da República (art. 15, §1º);
- Esgotamento dos instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio (art. 15, §2º);
- Esse esgotamento ser reconhecido formalmente pelo Chefe do Poder Executivo Federal ou Estadual (art. 15, §3º);
- Transferência do controle operacional dos órgãos de segurança pública necessários ao desenvolvimento das ações à autoridade encarregada (art. 15, §5º);
- Estabelecimento de um Centro de Coordenação e Operação, composto por representantes dos órgãos de segurança pública (art. 15, 5º, parte final);
- Atuação deve ser episódica, temporária e em área previamente estabelecida (art. 15, §4º).
Nesse diapasão, tem-se que o Presidente da República editou um Decreto datado de 06 de Fevereiro de 2017, autorizando o emprego das Forças Armadas para a Garantia da Lei e da Ordem Pública no estado do Espírito Santo, de 06 a 16 de fevereiro de 2017, por reconhecimento formal do Governador em exercício do Espírito Santo que estão indisponíveis e insuficientes, em razão paralisação das atividades dos policiais militares, os instrumentos destinados à defesa da Lei, da ordem e do patrimônio (Decreto Estadual n. 113-S de 07 de fevereiro de 2017). No mesmo Decreto, o Governador em exercício transferiu o controle operacional dos Órgãos de Segurança Pública ao General de Brigada Adilson Carlos Katibe, comandante da Força-tarefa conjunta, denominada Operação Capixaba.
Confira o Decreto estadual:
Do ponto de vista formal, nos parece, portanto, ser revestida de constitucionalidade e legalidade o emprego das Forças Armadas para a realização de serviços próprios dos órgãos de segurança pública no estado capixaba.
O que significa Controle Operacional da Segurança Pública? O que as Forças Armadas podem fazer?
Buscando o espírito da LC 97/99, para que a autoridade responsável pela execução episódica e temporária de policiamento execute suas atribuições, se faz necessária a transferência do controle operacional, por ato do Chefe do Poder Executivo Estadual, no caso. Essa autorização é necessária para resguardar a autonomia do ente federado e em respeito ao pacto federativo (CF/88, art. 1º c/c arts. 18 e 25).
Nesse prisma de ideais, somente para coordenar missões ou tarefas específicas a serem desempenhas naquela unidade federativa, sem violar nenhuma competência constitucional ou legal, é que se dá o poder das Forças Armadas. Nesse sentido, confira o texto legal estatuído no § 6º do art. 15 da LC 97/99, in verbis:
6o Considera-se controle operacional, para fins de aplicação desta Lei Complementar, o poder conferido à autoridade encarregada das operações, para atribuir e coordenar missões ou tarefas específicas a serem desempenhadas por efetivos dos órgãos de segurança pública, obedecidas as suas competências constitucionais ou legais. (Incluído pela Lei Complementar nº 117, de 2004)
Nota-se, desse modo, que as Forças Armadas estão autorizadas a realizar somente as atribuições tipicamente realizadas pela Polícia Militar, dentro dos ditames constitucionais e legais, tais como revistas pessoais e veiculares, blitz, atendimento de ocorrências, prisões em flagrantes, policiamento ostensivo nas ruas, planejamento da alocação desse policiamento e definir estratégias para a retomada do controle da ordem social, motivo pelo qual houve transferência do controle operacional.
A Polícia Militar do Espírito Santo está subordinada às Forças Armadas?
Por expressa disposição constitucional (CF/88, art. 144, § 6º), as Polícias Militares estaduais estão subordinadas aos respectivos governadores. Não há que se falar, assim, em subordinação da PM capixaba às Forças Armadas, contudo, inegável que a partir do momento em que o Governo do estado, formalmente, transfere o controle operacional da segurança pública para um Oficial das Forças Armadas, confere a ele autonomia para gerenciar e estabelecer as medidas que serão adotadas a partir de então no que diz respeito ao policiamento ostensivo em caráter emergencial, temporário e episódico, ou seja, durante o movimento de greve o Comandante-Geral da PM capixaba não poderá, no nosso sentir, se imiscuir no planejamento operacional estabelecido.
Entretanto, a LC 97/99 também determina a instalação de um Centro de Coordenação e Operação, em que há representantes dos órgãos de segurança pública, coibindo a tomada de decisões isoladas por parte do interventor militar.
Todavia, reafirmamos, entendemos que os Militares estaduais não estão subordinados ao controle das Forças Armadas e, no caso específico dos PMs do estado do Espírito Santo, como estão todos aquartelados, nem de fato existe essa subordinação.
A Polícia Civil do Espírito Santo está subordinada às Forças Armadas?
Da mesma forma, não existe qualquer subordinação da Polícia Judiciária Civil às Forças Armadas. Ademais, é preciso entender que o § 5º do art. 15 da LC 97/99 diz que a autoridade competente, o Governador no caso, deve transferir o controle operacional dos órgãos de segurança pública necessários ao desenvolvimento das ações para a autoridade encarregada das operações.
Como se nota, somente o controle operacional do policiamento ostensivo-preventivo foi transferido para as Forças Armadas. Desse modo, a princípio, as funções de manutenção da ordem pública, policiamento preventivo, para garantia da preservação da Lei e da ordem estão afetas, temporariamente, aos Militares Federais, não quaisquer atribuições próprias da Polícia Judiciária Civil, tais como instauração de inquérito, investigações de infrações penais comuns, lavratura de auto de prisão em flagrante e qualquer outro ato próprio da Polícia Civil.
Ademais, ressalta-se que a maior parte das atribuições da Polícia Judiciária está prevista em Lei, inclusive a legitimidade para determinados atos, a exemplo da capacidade postulatória do Delegado de Polícia para pedir busca e apreensão, prisão preventiva, interceptação telefônica e vários outros atos inerentes à investigação de crimes comuns, não podendo ser usurpadas.
Corroborando esse entendimento, a mesma Lei, ao tratar do policiamento em faixa de fronteira, no mar e nas águas interiores, determina expressamente o respeito das atribuições exclusivas da Polícia Judiciária. Veja o texto legal:
Art. 16-A. Cabe às Forças Armadas, além de outras ações pertinentes, também como atribuições subsidiárias, preservadas as competências exclusivas das polícias judiciárias, atuar, por meio de ações preventivas e repressivas, na faixa de fronteira terrestre, no mar e nas águas interiores, independentemente da posse, da propriedade, da finalidade ou de qualquer gravame que sobre ela recaia, contra delitos transfronteiriços e ambientais, isoladamente ou em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, executando, dentre outras, as ações de: (Incluído pela Lei Complementar nº 136, de 2010).
I – patrulhamento;
II – revista de pessoas, de veículos terrestres, de embarcações e de aeronaves; e
III – prisões em flagrante delito.
Por fim, lembra-se também, que a subordinação da Polícia Civil é em relação ao Governador do estado por previsão constitucional (CF/88, art. 144, § 6º), não podendo um simples Decreto estadual transferi-la como se disponível fosse. Destarte, salienta-se que não houve transferência do comando dos órgãos de segurança pública para as Forças Armadas, mas tão somente transferência do controle operacional, sem o qual o responsável não poderia implementar as medidas que se fazem necessárias. Controle operacional não significa controle total da segurança pública estadual, pois, ainda há a figura do Secretário de Segurança Pública.
Se houver crime contra os Militares Federais durante a execução da atividade típica de segurança pública, qual juízo competente para julgar e processar os acusados?
Muito embora o art. 9º, inciso III, do Código Penal Militar preveja que são crimes militares em tempo de paz os praticados por civil contra as instituições militares, contra militar em situação de atividade ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia ou preservação da ordem pública, entre outros casos, há decisão do STF em sentido contrário, interpretando restritivamente a competência da Justiça Militar.
Conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal (HC 112936) em situação semelhante, no qual determinado cidadão foi preso e acusado de desacatar um militar das Forças Armadas, exercendo função policial de policiamento ostensivo, a natureza dessa atividade é eminentemente civil, portanto, o crime deve ser julgado pela Justiça comum Federal e não pela Justiça Militar, configurando hipótese descrita no art. 109, IV da CF/88, ou seja, crimes em detrimento de bens, serviços ou interesses da União. Veja um trecho da decisão da Suprema Corte, que utilizou o Direito Comparado para fundamentar seu julgado:
Refoge à competência penal da Justiça Militar da União processar e julgar civis, em tempo de paz, por delitos supostamente cometidos por estes em ambiente estranho ao da Administração Militar e alegadamente praticados contra militar das Forças Armadas no contexto do processo de ocupação e pacificação das Comunidades localizadas nos morros cariocas, pois a função de policiamento ostensivo traduz típica atividade de segurança pública. Precedentes. A REGULAÇÃO DO TEMA PERTINENTE À JUSTIÇA MILITAR NO PLANO DO DIREITO COMPARADO. – Tendência que se registra, modernamente, em sistemas normativos estrangeiros, no sentido da extinção (pura e simples) de tribunais militares em tempo de paz ou, então, da exclusão de civis da jurisdição penal militar: Portugal (Constituição de 1976, art. 213, Quarta Revisão Constitucional de 1997), Argentina (Ley Federal nº 26.394/2008), Colômbia (Constituição de 1991, art. 213), Paraguai (Constituição de 1992, art. 174), México (Constituição de 1917, art. 13) e Uruguai (Constituição de 1967, art. 253, c/c Ley 18.650/2010, arts. 27 e 28), v.g.. – Uma relevante sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (“Caso Palamara Iribarne vs. Chile”, de 2005) ~[…]
Assim, adotando o mesmo raciocínio do STF em julgado oriundo da atuação das Forças Armadas no policiamento realizado no Complexo do Alemão e da Penha, eventual crime previsto no Código Militar Penal e também na legislação penal comum, ou seja, crime militar impróprio, se praticado por civil contra as instituições militares, a competência para julgamento é da Justiça Federal.
Qual autoridade competente para lavrar o procedimento?
Longe de ser uma questão meramente burocrática, entendemos que as consequências desse entendimento são importantíssimas, pois, uma vez reconhecida a competência da Justiça comum Federal, a atribuição para lavratura do procedimento (TCO ou APF) é da Polícia Federal e não das Forças Armadas.
No entanto, lembrando que no rito da Código de Processo Penal Militar não existe a figura do crime de menor potencial ofensivo, inclusive é vedada a aplicação da Lei n. 9099/95 pelo art. 90-A, se fosse reconhecida a competência da Justiça Castrense, os próprios Militares das Forças Armadas deveriam lavrar, sempre, e sem direito a fiança extrajudicial, Auto de Prisão em Flagrante em relação a todos os crimes contra eles praticados, de menor potencial ofensivo ou não, o que seria bastante gravoso ao civil, o qual seria conduzido a um quartel e lá mantido preso, até decisão judicial.
Enfim, muito embora justificável o uso das Forças Armadas para restabelecer a ordem e a Lei no estado do Espírito Santo, impende dizer que o seu emprego deve ser excepcional e, portanto, não é capaz de resolver a problemática que os Governos Federal e Estaduais enfrentam no combate à criminalidade, arraigada de diversas crises, notadamente nos presídios e sucateamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública. Indaga-se, se a crise exposta pelo movimento grevista se alastrar pelo país, seriam as Forças Armadas suficientes para restabelecer a ordem em todos as unidades federativas? Lembra-se que atualmente o efetivo das Forças Armadas é de aproximadamente 500 mil homens, enquanto só o efetivo somado das Polícias Militares dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais é de mais de 200 mil militares.
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Sobre o autor: Paulo Reyner é Delegado de Polícia Civil e ex-Policial Militar. Graduado em Direito pela Universidade do Distrito Federal – UDF, Especialista em Ciências Criminais e Especialista em Políticas e Gestão em Segurança Pública. Autor do livro Peças e Prática da Atividade Policial.