Uma reflexão sobre o sistema penitenciário brasileiro : o direito penal mínimo como fator dirimente da crise prisional – Justiça & Polícia

Uma reflexão sobre o sistema penitenciário brasileiro : o direito penal mínimo como fator dirimente da crise prisional

Por Thiago Soneghett Cotta

Introdução

As agências estatais de controle penal demonstram instabilidade e descontrole do sistema penitenciário brasileiro, fato este devido a políticas penais retrógradas e que continuamente demonstram não surtirem efeito no trato criminal.

Diante disso, a crise penitenciária demonstra a força de facções criminosas criadas pela leniência do próprio Estado em discutir questões que são tidas como “tabu”, principalmente pela classe política.

A falta de discussão sobre o sistema penal vigente e a grande massa carcerária, sobretudo negra, fortalece a expansão dos ciclos de criminalidade, em que há a cooptação do réu primário para garantir a sua sobrevivência no sistema prisional.

            O cenário brasileiro traz esse enfrentamento para os próximos anos e o presente artigo tem a intenção de fomentar a discussão entre as diversas matizes do conhecimento penal.

As prisões brasileiras e o sistema penal punitivista

As últimas rebeliões em presídios foram suficientes para que os olhares dos agentes políticos recaíssem sobre aqueles “depósitos de lixo” do mundo globalizado , assim como afirma Bauman:

“Removemos os dejetos da maneira mais radical e efetiva: tornando-os invisíveis por não olhá-los, e inimagináveis, por não pensarmos neles. Eles só nos preocupam quando as defesas elementares da rotina se rompem, e as precauções falham […]” (BAUMAN;Zygmunt,2005, p.38)

Pode-se extrair do que afirma Bauman de que a nossa sociedade civil só relega a primeiro plano os “indesejados” quando a nossa segurança pessoal é afrontada.

Essa sensação de segurança dilapidada se deve e muito ao discurso penal popular midiático o qual é sempre trazido à tona como forma de resolução da questão carcerária sob a égide do direito penal máximo, constituído através de duras penas e da minimização de direitos e garantias constituídas ao constrito de sua liberdade.

Bento esclarece que:

Há muito a opinião pública se acostumou a exigir mais punição e a querer ver mais pessoas presas, ainda que o delito seja de menor potencial ofensivo, por acreditar que o rigor da pena é capaz por si só de impedir o delito, de impedir a reincidência. Sabe-se que isso não corresponde à realidade. Se assim o fosse, o problema já estaria resolvido. Afinal, no passado as penas já foram cruéis, de morte, mutilação, suplício, prisão perpétua, banimento, exílio etc., e nem por isso os crimes deixaram de ocorrer ao longo da história, o que implica grande demanda de estudos sociais que não só na área do Direito.                                                    “Direito Penal mínimo e populismo penal: Considerações acerca dos discursos punitivos e da intervenção penal” (BENTO, 2013).

Estas garantias e direitos ao custodiado são previstas pela lei de execução penal, sendo assim, até mesmo aquele que se dirige ao legalismo e a duras penas deveria se apegar à lei, entretanto o discurso de ódio e o fortalecimento dele através do Estado faz com que haja uma justificação no descumprimento dessa norma infraconstitucional, reforçando assim: a essência do tratamento diferenciado que se atribui ao inimigo em que o direito lhe nega sua condição de pessoa como nos traz Zaffaroni (2007).

O criminólogo argentino ainda aduz que :

“A negação jurídica da condição da pessoa ao inimigo é uma característica do tratamento penal diferenciado que lhe é dado, porém não é a sua essência, ou seja, é uma consequência da individualização de um ser humano como inimigo, mas nada nos diz a respeito da individualização em si mesma. “ (ZAFFARONI; Eugenio Raúl, 2007, p.21)

            E o Ministério da Justiça nos relata bem em seu Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias do ano de 2014 quem são esses inimigos presentes no Direito Penal e que possuem seus direitos estrangulados pela desídia do Estado em nem mesmo cumprir a lei.

            Conforme este relatório a população carcerária em 2014 era de 622.202 pessoas, sendo que 55% tinham entre 18 e 29 anos, 61,6% são negros e 75,08% apenas possuíam o ensino fundamental completo. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA,2014)

Esses dados demonstram quem são os “indesejados” ou mesmo inimigos do direito penal : negros, jovens e com pouca escolaridade ou na esteira do pensamento de BAUMAN

     “[…] é nessa linha que se desenvolve o sistema criminal neoliberal globalizado em face dos “consumidores falhos”, isto é, aquelas “pessoas incapazes de responder aos atrativos do mercado consumidor porque lhes faltam os recursos requeridos”; são os “novos impuros” que não se ajustam ao jogo consumista; logo, representam um “problema”, como a “sujeira” que precisa ser removida. (BAUMAN;Zygmunt,1998, p.24)

O caminho para um sistema garantista

A crise penitenciária é a consequência do modelo punitivo desenvolvido através de décadas, ou seja, esta “crise” se estende a anos, pois, como comentado anteriormente, somente agora podemos perceber estas desumanidades cometidas no cárcere, por causa da aparente modificação em nossa rotina.

E muito disso se deve a omissão de nossas instituições do sistema de justiça criminal

Assevera Marcondes :

Desde a esfera política, legislativa ou gerencial, até o âmbito popular, o discurso permanece o mesmo: insistência no movimento expansionista repressivo de viés encarcerador, preferencialmente violador de direitos e garantias individuais. Até mesmo entre os órgãos do Poder Judiciário, que deveriam funcionar como freio contramajoritário de pulsões autoritárias, seja das multidões fascinadas pela violência, seja do campo político oportunista, o que existe é uma filiação massiva (salvo exceções pontuais) aos postulados clássicos da (pior) cartilha “lei e ordem” e das estratégias beligerantes de “enfrentamento” da criminalidade.                                                                                                                                Mortes em presídios não são acidentes nem indicativos de crise no sistema” (Marcondes,2017)

Essa manutenção de discurso fortalece o referencial punitivista ou do direito penal máximo e nos mostra que em toda escolha há um custo de oportunidades, como é dito em lições introdutórias de economia. Escolhas essas que custam liberdades e garantias que se demonstram no sistema punitivo através de prisões desarrazoadas ou com nenhuma lesividade a um bem jurídico.

Esses custos são demonstrados por Carvalho em uma escolha de um sistema penal punitivo ou mínimo/ garantista:

Nota-se, portanto, que a estrutura minimalista ou maximalista é representada pela presença ou ausência de critérios de controle do arbítrio punitivo, indicando opções políticas e o ônus a ela inerente: a certeza perseguida pelo direito penal máximo é que nenhum culpado fique sem punição, à custa da incerteza de que algum inocente possa ser punido. A certeza perseguida pelo direito penal mínimo é, ao contrário, que nenhum inocente seja punido, à custa da incerteza de que algum culpado reste impune. Os dois tipos de certeza, e os custos ligados às respectivas incertezas, refletem interesses e opções políticas contrapostas: de um lado a máxima tutela da segurança pública contra as ofensas ocasionadas pelos crimes, por outro, a máxima tutela das liberdades individuais contra as ofensas geradas por penas arbitrárias. (CARVALHO, 2003, p. 86).

Desse modo, há de se fazer a escolha por um sistema penal mais brando afastando-se do “status quo” haja vista os resultados produzidos não serem satisfatórios.

Esse afastamento é precípuo para uma lógica menos encarceradora em que se resguarde a liberdade apenas daqueles que tenham demonstrada em suas condutas lesividade e ofensividade , nas quais o direito penal seja a ultima ratio a ser aplicada.

Dessa forma Paulo de Souza Queiroz leciona :

“Reduzir, pois tanto quanto seja possível, o marco de intervenção no sistema penal, é uma exigência de racionalidade. Mas é também […] um imperativo de justiça social. Sim porque um Estado que se define Democrático de Direito (CF, art 1º), que declara, como seus fundamentos, ‘ a dignidade da pessoa humana’, a ‘ cidadania’, os ‘valores sociais do trabalho’, e proclama, como seus objetivos fundamentais, ‘ constituir uma sociedade livre, justa, solidária’, que promete ‘ erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais’, ‘promover o bem de todos, sem preconceitos de origem , raça, sexo , cor , idade e quaisquer outras formas de discriminação’ ( art.3º), e assume, assim declaradamente, missão superior em que lhe agigantam as responsabilidades, não pode, nem deve, pretender lançar sobre seus jurisdicionados, prematuramente, esse sistema institucional de violência seletiva, que é o sistema penal, máxime quando é esse Estado , sabidamente, por ação e/ou omissão, em grande parte corresponsável pelas gravíssimas disfunções sociais que sob seu cetro vicejam e pelos dramáticos conflitos que daí derivam.” . (QUEIROZ;Paulo de Souza,1998, p.31-32)

Por isso , permissa vênia, em um primeiro momento , o discurso mais coerente com a realidade social e que pode ser adotado sem uma mudança no modo de produção é o Direito Penal Mínimo ou do equilíbrio, porquanto essa mudança demandaria um tempo considerável, caso acontecesse.

Enquanto isso, nesse interim entre mudança nos meios de produção , a população carcerária, composta em grande parte por negros e outras minorias, ainda seria massivamente encarcerada sob a ótica punitivista e diariamente seria jogada nos “depósitos de lixo” da modernidade e estigmatizadas para o resto de suas vidas.

Assim leciona Bitencourt :

O grande problema é que continuará existindo um aparato de controle, e ninguém garante que os novos mecanismos de “controle democrático” não continuarão sendo tão repressivos e estigmatizadores quanto os anteriores. Por outro lado, quando que se produzirá a revolução? Não se pode estabelecer o momento em que ocorrerá a transformação qualitativa das relações de produção. E, enquanto esperamos essa revolução, o que acontecerá com as pessoas que se encontram no interior das prisões? (BITTENCOURT;Cezar Roberto,2015, p.601)

O direito penal mínimo deve ser um caminho, meio, para que possivelmente ocorra a progressão para o abolicionismo em uma sociedade mais justa e igualitária.

Assim denota o próprio Alessandro Baratta, abolicionista, em seus ensinamentos:

     “Nós sabemos que substituir o direito penal por qualquer coisa melhor somente poderá acontecer quando substituirmos a nossa sociedade por uma sociedade melhor, mas não devemos perder de vista que uma política criminal alternativa e a luta ideológica e cultural que acompanha devem desenvolver-se com vistas à transição para uma sociedade que não tenha necessidade do direito penal burguês, e devem realizar, no entanto, na fase de transição, todas as conquistas possíveis para a reapropriação, por parte da sociedade, de um poder alienado, para o desenvolvimento de formas alternativas de autogestão da sociedade, também no campo do controle do desvio.” . (BARATTA;Alessandro,2014, p.207)

Conclusão

A reflexão sobre este tema desse ser feita de forma permanente e temos de nos conscientizar de que se não mudarmos de forma necessária e urgente o nosso sistema penal vigente , ele continuará encarcerando a comunidade negra, pobre e pouco escolarizada.

A continuidade desse modelo penal apenas fortificará as desigualdades já tidas e os ciclos de criminalidade se perpetuarão, pois esse sistema prisional apresenta características próprias conforme Baratta:

As características deste modelo, do ponto de vista que mais nos interessa, podem ser resumidas no fato de que os institutos de detenção produzem efeitos contrários à reeducação e à reinserção do condenado, e favoráveis à sua estável inserção na população criminosa. (BARATTA;Alessandro,2014, p.183)

O que nos resta a fazer é a seguinte reflexão: afinal , o que queremos?

Não sermos incomodados em nossas normalidades cotidianas pelos “dejetos humanos” ou fornecer um tratamento penal digno, igualitário e ressocializador a quem de direito.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARATTA, Alessandro. Criminologia Critica e Critica do Direito Penal: introdução a sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santo. Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 6ª edição , outubro de 2011. 2ª reimpressão, agosto de 2014, p.183;207.
BAUMAN,Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Trad. Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p.24.
BAUMAN,Zygmunt. Vidas Desperdiçadas . Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p.38
BENTO, Leandro Henrique de Morais. Direito Penal mínimo e populismo penal: Considerações acerca dos discursos punitivos e da intervenção penal, 2013. Disponível em:< https://jus.com.br/artigos/23914/direito-penal-minimo-e-populismo-penal />. Acesso em: 21 de fev. 2017.
BITENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 21ª edição revista, ampliada e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2015.
MACHADO,Leonardo Marcondes. Mortes em presídios não são acidente nem indicativo de crise no sistema, 2017. Disponível em:< http://www.conjur.com.br/2017-jan-17/academia-policia-mortes-prisoes-nao-sao-acidente-nem-indicativo-crise-sistema />.             Acesso em: 21 de fev. 2017
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, 2014. Disponível em:< http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/documentos/infopen_dez14.pdf>. Acesso em: 21 de fev. 2017.
QUEIROZ, Paulo de Souza. Do caráter subsidiário do direito penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p 31-32.

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