STJ e a busca domiciliar. Qual a diferença entre intuição policial e fundada suspeita? – Justiça & Polícia

STJ e a busca domiciliar. Qual a diferença entre intuição policial e fundada suspeita?

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Em decisão recentíssima a sexta turma do STJ (REsp 1.574.681) afastou a condenação de determinado indivíduo, inicialmente condenado por tráfico de drogas, após busca domiciliar realizada pela polícia na sua residência, onde foi encontrada determinada quantidade de entorpecente.

No caso concreto, quando policiais estavam realizando patrulhamento de rotina em um local conhecido por ter pontos de venda de drogas, perceberam que um indivíduo correu para o interior da sua residência, o que teria motivado o ingresso da polícia no domicílio, local onde foram encontradas 18 porções de droga.

Interessante notar, que o Tribunal da Cidadania acatou o argumento do TJRS, que já havia absolvido o denunciado, argumentando que o simples fato de alguém retirar-se para sua residência quando vê alguma viatura da polícia não significa que há justificativa plausível para o ingresso no âmbito domiciliar, nem tampouco que está havendo algum crime no local.

Outro ponto interessante, com certeza de muita valia na atividade diária da polícia, foi a diferenciação feita, mesmo sucintamente, entre suspeição e a mera intuição policial.

Na seara da Polícia, não é segredo que a rotina e os anos de prática agregam ao policial certo sentimento intuitivo no que diz respeito aos indivíduos que estão cometendo algum ilícito penal ou em vias de cometê-lo.

Difícil explicar, mas vamos tentar.

Por exemplo, quase todo policial, automaticamente, sobretudo quando em serviço, tem o costume de olhar para a cintura de todos que estão em sua volta, a fim de notar qualquer volume que possa indicar que determinada pessoa está portando uma arma de fogo.

De outra sorte, algumas vezes, quando a polícia está realizando patrulhamento de rotina de repente se depara com algum indivíduo que ao avistar a viatura, simplesmente, em um ato quase imperceptível para quem não está acostumado com a situação, interrompe sua caminhada por alguns segundos, fazendo com que nasça no policial certa intuição de que ele possui algo ilícito ou é foragido etc.

Procurando ilustrar um pouco mais, em blitz policial, essas realizadas diuturnamente, sobretudo, pelas Polícias Rodoviárias, muitas vezes inicialmente não se encontra nenhuma irregularidade, pois a documentação veicular está correta, os documentos pessoais são apresentados, em revista perfunctória ao veículo nada ilícito é encontrado. Contudo, o condutor ou algum passageiro apresenta conduta incomum, com nervosismo exacerbado, gagueja, passa informações incompletas. Tudo isso pode motivar os policiais, naquela circunstância específica, a realizar uma revista veicular mais detalhada.

Assim, difícil a tarefa do policial em distinguir intuição de fundada suspeita. É preciso entender que, nas ilustrações acima, a ausência de ação da polícia, que tem que tomar decisões em frações de segundo, pode significar o sucesso ou não de uma prisão; a antecipação ou não a um perigo iminente.

A conduta do policial pode resultar na apreensão de uma arma de fogo e prisão de seu portador; a captura de um foragido da Justiça e, por fim, apreensão de significativa quantidade de drogas escondida em um veículo, por exemplo, no seu assoalho, tanque de combustível etc.

Afinal, qual a diferença entre intuição e suspeição?

Ao que parece, o STJ buscou distinguir intuição de fundada suspeita. Distinguiu, ainda, requisitos que justificam a busca pessoal em via pública e busca domiciliar, tendo como supedâneo a mera intuição policial e elementos concretos de suspeição.

Vejamos o excerto do julgado (REsp 1.574.681) que trata do tema:

O ingresso regular de domicílio alheio depende, para sua validade e regularidade, da existência de fundadas razões (justa causa) que sinalizem para a possibilidade de mitigação do direito fundamental em questão. É dizer, somente quando o contexto fático anterior à invasão permitir a conclusão acerca da ocorrência de crime no interior da residência é que se mostra possível sacrificar o direito à inviolabilidade do domicílio.

A mera intuição acerca de eventual traficância praticada pelo recorrido, embora pudesse autorizar abordagem policial, em via pública, para averiguação, não configura, por si só, justa causa a autorizar o ingresso em seu domicílio, sem o consentimento do moradorque deve ser mínima e seguramente comprovado – e sem determinação judicial.

Conforme preceitua o § 2º do art. 240 c/c art. 244 do Código de Processo Penal, a busca pessoal independe de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.

Por outro lado, a busca domiciliar passou a ter proteção constitucional, pois a Lei Maior estabeleceu que a casa é asilo inviolável do indivíduo, nela só podendo se ingressar em quatro hipóteses específicas, quais sejam: 1) consentimento do morador; 2) desastre ou para presta socorro; 3) por determinação judicial, durante o dia e, por fim 4) em flagrante delito (inciso XI, art. 5º, CF/88).

É de se notar, nos termos do art. 240, §1º, do CPP, que a busca domiciliar é autorizada quando houver fundadas razões a autorizarem prender criminosos, apreender produto de crimes, objetos falsificados, armas, munições, entre outras possibilidades conforme previsão legal supramencionada.

A fundada suspeita ou justa causa é requerida, inclusive, na fundamentação de eventual mandado judicial de busca domiciliar, na medida em que todas as decisões judiciais devem ser motivadas e a lei processual estabelece os requisitos precisos para tanto (art. 93, IX, da CF/88, c/c art. 240 do CPP).

Por tudo isso, o cerne da questão está na concretude ou objetividade dos elementos de suspeição, pois é justamente isso que a diferencia da mera intuição.

A intuição é elemento interno do agente, enquanto a suspeição é elemento externo, podendo ser aferida por qualquer pessoa.

Mais ainda, a suspeição é passível de controle judicial, pois naquela determinada circunstância, qualquer pessoa, provavelmente, teria a mesma reação.

Enquanto a mera intuição conduz à um juízo de possibilidade, ou seja, relativa e incerta ocorrência de um determinado resultado, a fundada suspeita denota um juízo de probabilidade. Esta última, por sua vez, impende de raciocínio e análise situacional, sendo bastante elevada as chances da ocorrência do resultado esperado.

Já a intuição, é a capacidade de perceber ou pressentir coisas, independentemente de raciocínio ou análise, quase que numa dimensão metafísica.

Não se pode olvidar, além disso, que a fundada suspeita a autorizar a polícia a ingressar no domicílio em caso de flagrante delito, deve preceder ao ingresso no lar residencial, ou seja, “somente quando o contexto fático anterior à invasão permitir a conclusão acerca da ocorrência de crime no interior da residência é que se mostra possível sacrificar o direito à inviolabilidade do domicílio”, nas palavras do Exmo. Ministro Rogério Schietti.

Dessa forma, podemos traçar a seguinte diferenciação entre mera intuição e fundada suspeita:

MERA INTUIÇÃO

FUNDADA SUSPEITA – JUSTA CAUSA

Elemento interno, altamente amparado na subjetividade do policial.

Elemento concreto externo, que pode ser aferido objetivamente pelo Delegado de Polícia ou Poder Judiciário.

Denota mera possibilidade, ou seja, pode ser ou não que esteja ocorrendo um crime.

Denota alto grau de probabilidade, assim, existem elementos significativos que conduzem a acreditar que no local está ocorrendo um crime. Portanto, é justa causa para ação policial.

Pode autorizar a busca pessoal em via pública. (REsp 1.574.681)

Autoriza a busca pessoal em via pública.

Jamais pode ser usada como justificativa plausível para invasão domiciliar, nem por ação própria da polícia, nem tampouco como fundamento de ordem judicial.

Autoriza o ingresso em domicílio tanto pela ação própria da polícia, quanto como fundamento de ordem judicial.

De qualquer maneira conduz à nulidade da invasão domiciliar.

Devem corresponder a elementos aferidos PREVIAMENTE à invasão domiciliar, sob pena de macular de nulidade por derivação a prova colhida, conduzindo ao relaxamento da prisão realizada. (§1º, art. 157, CPP c/c REsp 1.574.681))

Configura abuso de autoridade. (art. 3º, b, da Lei 4.898/65).

Afasta o dolo do agente, portanto, desqualifica o crime de abuso de autoridade. ( RE 603616/RO)

Quais os requisitos da abordagem policial (busca pessoal e domiciliar)?

Sintetizando, a decisão do STJ prevê que para busca pessoal, em via pública, basta a mera intuição de que o suspeito está praticando algum crime, sendo apta a configurar a fundada suspeita.

Em sentido oposto, todavia, para o ingresso no lar domiciliar, há que se estabelecer elementos concretos e prévios de que em determinada residência esteja ocorrendo algum crime.

Ilustrando melhor, no caso concreto julgado pelo STJ, acredita-se que se mais elementos concretos tivessem sido colhidos, tais como: uma investigação prévia, com filmagens da movimentação de pessoas no local; pesquisa sobre a vida pregressa do investigado; breve conversa com vizinhos sobre a conduta etc., haveria fundada suspeita (e não mera intuição policial) autorizando o pronto ingresso no domicílio.

Importante salientar que a apreensão de eventual material ilícito, mesmo que configure crime permanente, tais como drogas, armas de fogo etc., não justifica o invasão domiciliar dissociada de justa causa.

Nesse sentido, a apreensão do material ilícito não será admitida em processo, pois eivada de nulidade em razão da ilicitude da prova por derivação (§1º, art. 157, CPP).

Assim, o Delegado de Polícia pode, até mesmo, relaxar eventual prisão em flagrante (ilegal) feita nessas circunstâncias, na medida em que contraria o sistema constitucional e processual penal vigente, nos termos do art. 5, XI, da CF/88 c/c art. 157, §1º e 304, §1º do CPP. Veja como é clara a redação deste último dispositivo:

Art. 304. Apresentado o preso à autoridade competente, ouvirá esta o condutor e colherá, desde logo, sua assinatura, entregando a este cópia do termo e recibo de entrega do preso. Em seguida, procederá à oitiva das testemunhas que o acompanharem e ao interrogatório do acusado sobre a imputação que lhe é feita, colhendo, após cada oitiva suas respectivas assinaturas, lavrando, a autoridade, afinal, o auto.     

1o  Resultando das respostas fundada a suspeita contra o conduzido, a autoridade mandará recolhê-lo à prisão, exceto no caso de livrar-se solto ou de prestar fiança, e prosseguirá nos atos do inquérito ou processo, se para isso for competente; se não o for, enviará os autos à autoridade que o seja.

Da mesma maneira, evidentemente, o juiz em audiência de custodia deve relaxar a prisão ilegal, nos termos do art. 310, I, do CPP.

Compreenda-se, não é que não exista situação flagrancial em caso de, por exemplo, apreensão de droga em determinada residência. Mas sim que mesmo havendo situação de flagrante decorrente de crime permanente, o motivo que determinou a prisão foi ilegal e, portanto, eivou de ilicitude todas as provas colhidas.

Traçando um paralelo com o Direito Administrativo, podemos comparar com a Teoria dos Motivos Determinantes do ato administrativo, que aplica-se tanto a atos vinculados como discricionários. Conforme preleciona Marcelo Alexandrino e Vicente Paula:

A denominada teoria dos motivos determinantes consiste em, simplesmente, explicitar que a administração pública está sujeita ao controle administrativo e judicial (portanto controle de legalidade ou legitimidade) relativo à existência e à pertinência ou adequação dos motivos – fático e legal – que ela declarou como causa determinante da prática de um ato.[i]

Assim, se o motivo que determinou a prática do ato foi ilegal ou inexistente, ao ato seria inválido e poderia ser anulado pelo Poder Judiciário ou pela própria administração.

Se na seara do Direito Administrativo, não tão invasivo aos direitos e garantias fundamentais, há que se dar importância ao motivo do ato, com muito mais razão no âmbito do direito processual penal, o qual pode ensejar à privação da liberdade individual.

Ora, se o ingresso no lar residencial foi ilegal, a prisão e apreensão de objeto que constitua corpo de delito também não podem ser usadas como prova em juízo.

Por oportuno, abaixo se transcreve parte importante do voto do Min. Ricardo Schietti:

Apenas para exemplificar hipóteses que explicariam a fuga do indivíduo abordado pela polícia, pense-se na situação em que esteja o suspeito com medo de ser vítima de uma arbitrariedade (dados os relatos de violência policial em determinada comunidade), ou que esteja receoso de ser preso por estar sem documentos ou por ostentar um registro criminal em sua folha de antecedentes, ou, ainda, por estar descumprindo alguma medida judicial restritiva (prisão domiciliar, v.g.) etc.
Tais hipóteses, ou outras a se imaginar, permitiriam a abordagem e até eventualmente a detenção da pessoa, mas não justificariam o ingresso em seu domicílio. Assim, ao menos que se possa inferir, de fatores outros que não a mera fuga ante a iminente abordagem policial, que o evasor esteja praticando crime de tráfico de drogas, ou outro de caráter permanente, no interior da residência onde se homiziou, não haverá razão séria para a mitigação da inviolabilidade do domicílio, ainda que haja posterior descoberta e apreensão de drogas no interior da residência – circunstância que se mostrará meramente acidental–, sob pena de esvaziar-se essa franquia constitucional da mais alta importância.

Do crime de abuso de autoridade

Feitas essas considerações, sobretudo no que tange ao ingresso precipitado no domicílio com o consequente relaxamento da prisão em flagrante ou mesmo absolvição do denunciado, pode ficar a dúvida: os policiais responsáveis pela prisão devem responder pelo delito de abuso de autoridade (art. 3º, b, da Lei 4.898/65)?

Sobre o tema, transcrevemos trecho da nossa obra Peças e Prática da Atividade Policial[ii], confira:

Instado a se manifestar sobre o tema, decidiu o STF, com repercussão geral reconhecida, que “a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados.” (STF. Plenário. RE 603616/RO, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 4 e 5/11/2015 (repercussão geral) (Info. 806) – grifo nosso.

Assim, consubstanciado no entendimento esposado pelo STF, deve haver justa causa para o ingresso na residência nessas circunstâncias, se não houver, configura-se abuso de autoridade, em razão da violação domiciliar. Nas palavras do Ministro Gilmar Mendes, com a decisão “estar-se-á valorizando a proteção à residência, na medida em que será exigida a justa causa, controlável a posteriori para a busca. No que se refere à segurança jurídica para os agentes da Segurança Pública, ao demonstrarem a justa causa para a medida, os policiais deixam de assumir o risco de cometer o crime de invasão de domicílio, mesmo que a diligência venha a fracassar”.

Então, podem-se extrair as seguintes conclusões da decisão acima:

  1. Caso haja justa causa de estar ocorrendo algum crime em flagrante delito, verificada no caso concreto, é lícito o ingresso no domicílio;

  2. Nas mesmas circunstâncias acima, mesmo que não se encontre objeto ilícito na busca, droga, por exemplo, não se configura abuso de autoridade, pois afastado o dolo dos policiais;

  3. As provas colhidas na busca domiciliar com justa causa são válidas, sobretudo em se tratando de crimes permanentes, como armazenamento de drogas, sequestro etc.;

  4. Caso não haja justa causa, o Policial pode responder civil, penal e disciplinarmente por sua conduta.

Finalmente, mais não menos importante, há que se salientar que, não raro, ingressos ilegais em domicílios por policiais tendem a alimentar outra prática abjeta, justamente o flagrante forjado.

Ocorre que, visando justificar a invasão domiciliar, mesmo quando não encontram nenhum objeto ilícito, maus policiais costumam introjetar materiais ilícitos (drogas, armas etc.), atribuindo a posse ou propriedade ao morador.

Logicamente, em que pese de difícil comprovação, tal conduta também conduz à invalidade de todo processo, se tratando, inclusive, de crime impossível nos termos da Súmula n.º 145 do STF.

Não queremos dizer com o exposto acima, que a intuição policial, o tirocínio, deve ser criminalizado. Contudo, deve ser usado de acordo com o sistema constitucional vigente, sobretudo no que tange ao ingresso domiciliar.

Cotejando as duas decisões das maiores cortes judiciais do país, nota-se como é importante saber a diferenciação entre mera intuição e fundada suspeita, pois eventual confusão pode fazer o policial responder por abuso de autoridade. Mais ainda, pode conduzir a absolvição de um criminoso.

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Sobre o autor: Paulo Reyner é Delegado de Polícia Civil e ex-Policial Militar. Graduado em Direito pela Universidade do Distrito Federal – UDF, Especialista em Ciências Criminais e Especialista em Políticas e Gestão em Segurança Pública. Autor do livro Peças e Prática da Atividade Policial.


 

[i] ALEXANDRINO. Marcelo. Vicente Paulo. Direito administrativo descomplicado. 20 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método. 2012. p. 474/475.

[ii] MOUSINHO. Paulo Reyner Camargo. Peças e prática da atividade policial. 1. Ed. Macapá, AP. Ed. Do Autor, 2017. p. 109.

 

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