O direito fundamental de portar arma de fogo – Justiça & Polícia

O direito fundamental de portar arma de fogo


Por Paulo Reyner Camargo Mousinho

À primeira vista pode soar estranho o título acima, pois, haveria mesmo um direito fundamental de portar arma de fogo? Contudo, é inegável que sempre que ocorre um crime bárbaro no seio familiar, ou mesmo um latrocínio cuja dinâmica dos fatos conduz a acreditar que a vítima reagiu e foi morta logo em seguida, vozes se insurgem contra a proibição de livre acesso dos cidadãos às armas de fogo.

De fato, se perquirirmos todo o texto constitucional pátrio, não acharemos nenhuma garantia expressa assegurando o livre acesso a armas de fogo a todos os cidadãos. Na verdade, uma compreensão mais apressada dos principais direitos previstos na Carta Constitucional, ou seja, à vida, à liberdade, à segurança, à igualdade e à propriedade, tende a afastar a garantia do livre porte de arma de fogo.

No entanto, impende dizer que o livre porte de arma pode significar uma garantia, um instrumento para a plena efetivação dos demais direitos. Afinal, como poderemos garantir nossos direitos de mãos vazias?

É certo que a formação do Estado, amparada por teorias do chamado Contrato Social ou Contratualismo[i], que tiveram como principais expoentes John Locke, Jean-Jaques Rousseau e Thomas Hobbes – os Contratualistas, justifica o monopólio estatal da persecução penal, nomeadamente nos órgãos policiais e do Poder Judiciário, alegando que, implicitamente, cada cidadão abriu mão de parcela da sua liberdade no intuito que o Estado garantisse a segurança de todos e, por consequência, uma convivência social harmônica, pois, se cada um de nós exercesse sua liberdade plenamente, o mais forte prevaleceria sempre sobre o mais fraco, não havendo, verdadeiramente, liberdade a todos.

A ideia é bastante razoável e aceita por muitos doutrinadores. Contudo, o que ocorre quando o Estado falha na prestação de garantia de segurança, vida, liberdade, do direito de propriedade aos seus jurisdicionados? Até que ponto podemos abrir mão de nossa liberdade e direitos individuais em prol da coletividade?

O que estamos presenciando no Brasil são situações absurdas de mau planejamento na Segurança Pública e em diversos setores de organização estatal. Não soa inverossímil que escolas no Rio de Janeiro tenham que ser fechadas por causa de tiroteios? Não nos parece absurdo que traficantes impeçam comerciantes de abrir as portas?

Segundo o Fórum Nacional de Segurança Pública, o número de homicídio em 2014 no Brasil foi de 59.627 mil, enquanto em 2003 foram registrados 48.909 mil óbitos violentos. Assim, notório perceber que estamos regredindo no que tange à garantia de segurança.

Deste modo, o Estado brasileiro não está conseguindo prestar a contento seu dever segurança pública aos seus cidadãos.

Ademais, o próprio contratualista John Locke defendia que o Contrato Social se baseia na confiança e no consentimento. Os indivíduos de uma sociedade consentem que uma determinada administração centralize o poder público. Ao governante cabe garantir essa delegação de poderes, retribuindo os cidadãos com segurança jurídica, proteção de suas vidas e propriedade.

Uma vez que essa relação de confiança é quebrada, quando o governante age por má-fé ou não garantindo os direitos individuais, a segurança jurídica e a propriedade privada, ou, ainda, não garantindo os direitos naturais, que uma vez dados por Deus seria impossível alguém cerceá-los, é possível que o povo se revolte e o destitua do cargo. Aliás, pensamento inédito para a época, pois antes de Locke não se ousava questionar o governante, que tinha sido posto no poder supostamente por Deus.[ii]

Nesse prisma de pensamento, por oportuno trazer ao leitor a informação que vários países não aceitam a ideia de outorgar ao Estado e, somente a ele, o exercício da força para defender o direito ao patrimônio, à vida e à segurança.

A Segunda Emenda à Constituição norte-americana, por exemplo, por decorrência do direito à liberdade, garantiu a todos os americanos o direito de possuir e portar armas de fogo. Nos Estados Unidos, então, podemos dizer que há sim um direito fundamental de acesso a armas de fogo. Confira o texto da citada emenda:

A well regulated Militia, being necessary to the security of a free State, the right of the people to keep and bear Arms, shall not be infringed. (Sendo necessária à segurança de um Estado livre a existência de uma milícia bem organizada, o direito do povo de possuir e usar armas não poderá ser infringido.)

Em outros países todos os cidadãos possuem porte de arma e podem, inclusive, ser chamados a qualquer momento para defender sua pátria em caso de agressão ou ameaça estrangeira à sua soberania. Todos treinam e devem estar preparados para possuir, manejar e fazer emprego com precisão de seu armamento. Sem dúvidas uma cultura bastante diferente da nossa.

Entre os países mais liberais no que tange ao uso de armas de fogo estão Honduras, Finlândia, Sérvia, Suécia, Canadá, Noruega, Panamá, Suíça, República Checa e os Estados Unidos[iii]. Cada país conta uma particularidade cultural para o uso de armamento por seus cidadãos. Alguns ligados à caça, outros por sua grande extensão rural e, ainda, pelo histórico de guerras e, claro, outros por significar um mecanismo de defesa pessoal e familiar.

Mesmo no Brasil, o texto constitucional não proíbe o porte de arma de fogo. Como se sabe, no ano de 2005 houve um referendo cujo objetivo foi obter legitimação popular para a concessão do uso restrito ou não de arma de fogo. Assim, por força de uma legislação infraconstitucional (Lei 10.826/03, art. 35, § 1º) que o livre acesso às armas de fogo se encontra vetado, sendo excepcional a autorização legal para o uso bélico. (Para saber mais sobre o assunto sugerimos a leitura do artigo intitulado Quem pode “andar” armado no Brasil?)

Necessário dizer, ainda, que o resultado do referendo acima citado foi pela NÃO proibição da comercialização de armas no país. Conforme dados constantes no TSE, O resultado final foi de 59.109.265 votos rejeitando a proposta (63,94%), enquanto 33.333.045 votaram pelo “sim” (36,06%), como resposta à pergunta “O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?”.

Ocorre que, devido a própria estrutura restritiva do Estatuto do Desarmamento, desde sua promulgação houve um decréscimo nas autorizações para a posse e porte de armas, na medida em que se fazem necessários diversos requisitos para que o cidadão comum, não ocupante dos cargos previstos no art. 6º do ED, consiga adquirir, legalmente, uma arma de fogo. Ressalte-se, ainda, que a autorização é ato administrativo discricionário e precário, o que dificulta ainda mais a aquisição do material bélico.

Passados quase 15 anos da consulta popular, não seria o momento de se  fazer cumprir o referendo? Pois, afinal, a população decidiu pela comercialização de armas no Brasil, estando, nesse aspecto, o Estatuto do Desarmamento em desacordo com a vontade popular.

Entre os anos de 1995 a 2003 a taxa de homicídios (por 100 mil habitantes) era de 26,44%. Já em 2014 a taxa subiu para 29,1% (veja o estudo completo).

Notório reconhecer que a proibição do uso de armas não surtiu o efeito esperado. O país está mais violento. Afinal, as armas que matam não são as comercializadas legalmente. Porém, sem dúvidas o acesso às armas ilegais é facilitado ao criminoso, enquanto o cidadão de bem fica incauto, indefeso, desprotegido.

A VISÃO CONTRÁRIA

Malgrado a crítica à proibição ao uso irrestrito de armas de fogo, evidentemente há diversas vozes contrárias, ou seja, defendendo o Estatuto do Desarmamento e suas consequências.

A média anual de homicídios no Brasil entre 2011 e 2013 foi de 55.113. Em dados disponíveis no site do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, caso o Estatuto do Desarmamento não tivesse sido aprovado, uma projeção feita diz sem o Estatuto, esse número teria saltado para 77.889, ou seja, 41% a mais em relação ao observado. Em estados do Norte e do Nordeste, a disparidade teria sido ainda maior.[iv]

Deve-se considerar, também, que muitos crimes de ímpeto certamente aumentariam. Crimes de ímpeto são aqueles em que o autor, devido às circunstancias específicas em que está inserido, age por impulso e violenta emoção. Assim, discussões no transito, brigas familiares, entre vizinhos, caso todos estivessem armados, provavelmente, terminariam em óbitos.

Outro fator digno de nota, diz respeito ao despreparo no manuseio do armamento. Até policiais experientes são passíveis de erros crassos. Ademais, em um roubo, sequestro etc. a vítima, quase invariavelmente, é pega de surpresa, fazendo com que a reação ao crime se torne demasiadamente perigosa.

Países como o Japão, em que foi totalmente abolido o uso pessoal de armamentos, a taxa de homicídios é de 0,4 por 100 mil habitantes, bastante distante da realidade brasileira.[v]

Finalmente, importante dizer, ainda, que há grande looby da indústria bélica na modificação da atual legislação. O interesse econômico, sem dúvidas, deve ser considerado na dissipação de informações contrárias ao Estatuto do Desarmamento. A pressão de grupos organizados com interesses meramente econômicos, influenciando as decisões políticas traz consigo um perigoso desvirtuamento das causas e consequências da liberação do uso de armas no país.

PARA REFLEXÃO

Bem, como visto, o direito ao porte de arma de fogo pode ser considerado fundamental em determinados países. Em outros, todavia, há inversão dessa lógica, assim, todos têm o direito que ninguém porte arma de fogo. Tudo depende da tradição e do modelo social escolhido.

Em interessante análise, Leonardo Narloch mostra sua opinião no sentido que, talvez, seja “possível ainda que as armas de fogo tenham um efeito ambivalente – aumentem e ao mesmo tempo diminuam a violência. O maior porte de armas talvez faça crescer os casos de homicídio e suicídio, mas reduza a taxa de furto, latrocínio e violência contra a mulher.”[vi]

Não podemos deixar de dar razão ao articulista. O Japão, onde as armas de fogo são proibidas, a taxa de homicídios é de 0,4/100 mil ha. Já na Finlândia, país liberal no uso de armas, a mesma taxa é de 2.2, igualmente baixa se comparada com o Brasil, cuja taxa é de 29.1.

Talvez, malgrado opiniões tão divergentes sobre o assunto, estejamos tão desesperados por uma qualidade de vida melhor, que nos comparamos a todo instante ora aos países liberais sobre o assunto, ora aos países restritivos, apontando os pontos positivos de cada um, sem nos atentarmos para os reais fatores que imprimem violência: a desigualdade social, a corrupção, a falta de educação de qualidade, entre outros.

No entanto, a sensação de insegurança aponta para um ponto inconteste: o Estado brasileiro tem falhado no seu mister em proporcionar segurança e uma sadia qualidade de vida à sua população.

O direito a defender a si mesmo e sua família, sem dúvidas alguma, se alicerça num dos mais primitivos instintos, o da sobrevivência. Enquanto não sentirmos que estamos em segurança, a discussão persistirá.

Nesse sentido, o que desejamos mesmo, é ter assegurado o direito fundamental à uma vida digna, portando ou não armas de fogo.

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Sobre o autor: Paulo Reyner é Delegado de Polícia Civil e ex-Policial Militar. Graduado em Direito pela Universidade do Distrito Federal – UDF, Especialista em Ciências Criminais e Especialista em Políticas e Gestão em Segurança Pública. Autor do livro Peças e Prática da Atividade Policial e administrador do site Justiça & Polícia.


[i] Contratualismo é um conjunto de correntes filosóficas que tentam explicar a origem e a importância da construção das sociedades e das ordens sociais para o ser humano. De um modo geral, o contrato social ou contratualismo consiste na ideia de um acordo firmado entre os diferentes membros de uma sociedade, que se unem com o intuito de obterem as vantagens garantidas a partir da ordem social. O que é contratualismo? Disponível em: https://www.significados.com.br/contratualismo/ Acesso em 01.07.2017.

[ii] I.A.Mello, Leonel (1999). «4. John Locke e o individualismo liberal». In: Francisco C. Weffort. Os Clássicos da Política – Volume 1. Editora Ática 12 ed. [S.l.: s.n.] pp. pp. 81–89.

[iii] Os dez melhores países para proprietáiros de armas. Disponível em: http://www.defesa.org/os-10-melhores-paises-para-proprietarios-de-armas/ . Acesso em 02.07.17.

[iv] Taxa de homicídios no Brasil atingiu récorde em 2014. Disponível em: < http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&id=27412>. Acesso em 02.07.2017.

[v] dados disponíveis em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_pa%C3%ADses_por_taxa_de_homic%C3%ADdio_intencional>. Acesso em 02.07.17.

[vi] O porte de armas aumenta ou diminui a violência? Disponível em: < http://veja.abril.com.br/blog/cacador-de-mitos/o-porte-de-armas-aumenta-ou-diminui-a-violencia/>. Acesso em 02.07.17.

4 comentários em “O direito fundamental de portar arma de fogo

  • O referendo de 2005, ao contrário do mencionado em seu artigo, teve resultado A FAVOR da liberação da produção e comercialização de armas de fogo no Brasil. Não é necessário um novo referendo, mas apenas que se cumpra o que foi votado.
    Acho curioso que artigos e matérias veiculados afirmam que o aumento no número de armas implicariam num maior número de crimes, sendo que nenhum criminoso em toda a nossa história jamais teve dificuldade de acesso a armas de fogo, bem pelo contrário.
    E outro aspecto interessante que vejo replicado em sua matéria, é o fato de que o desarmamento no Brasil tem 20 anos, mas todos se esquecem que em toda a nossa história anterior a 1997 os brasileiros sempre tiveram e portaram armas de fogo, mas não se tornaram criminosos por este fato.
    Bem pelo contrário – veja o caso dos atiradores registrados no Exército Brasileiro – 104 mil homens e mulheres com Porte de armas inclusive de calibres restritos, e total ausência de crimes cometidos pelos mesmos.
    Finalmente, ressalto que o Direito a se ter e portar armas de fogo é sim Direito Fundamental inclusive no Brasil, pois a nossa Constituição Federal preconiza que temos o direito à vida. Se não tivermos os meios para defender este bem maior, o caput do art. 5o poderia ser apagado sem nenhum outro prejuízo para todos nós.

    • Prezado Arnaldo Adasz,
      Primeiramente obrigado pelo comentário, sua opinião é sempre muito bem vinda!
      De fato, reconheço o equívoco da informação constante no artigo sobre o resultado do referendo previsto no § 1º, do art. 35 da Lei 10.826/03. De fato, o “NÃO” à pergunta “O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?” saiu vitorioso. Vou corrigir o texto do artigo para adicionar essa informação. O resultado final foi de 59.109.265 votos rejeitando a proposta (63,94%), enquanto 33.333.045 votaram pelo “sim” (36,06%).
      Contudo, o que ocorre é que o restante do texto do Estatuto do Desarmamento continuou em vigor, restringindo bastante a autorização para posse e porte de arma de fogo para cidadãos que não os previstos no art. 6º da Lei 10.826/03, resultando em uma maior dificuldade para conseguir autorização para o porte e posse de armas de fogo no país.Inegável, portanto, que embora permitida a comercialização de armas de fogo, não é tão simples conseguir comprar uma arma legalmente no Brasil.
      Sobre o livre porte de armas, compreendo sua opinião como presidente da Associação dos Atiradores Civis. Necessário dizer, entretanto, que antes da Lei 9.437/94, primeira a considerar crime o porte e posse de armas de fogo no país (art. 10), o porte de arma já era proibido desde 1941, pela Lei de Contravenções Penais (arts. 18 e 19). Apenas, a conduta configurava uma mera contravenção penal e não um crime, com pena mais branda.Talvez por isso mais desrespeitada.
      Por oportuno, impende ainda dizer, que a questão é demasiada complexa, e não diria que das 104 mil pessoas registradas no Exército como atiradores/ colecionadores não tiveram nenhum incidente, veja, por exemplo, o caso do roubo de cerca de 60 armas de fogo ocorrido no município goiano de Luziânia/GO. Foram 60 armas a mais para as mãos de bandidos nesse caso particular.
      Pessoalmente, não acredito que seja o livre porte de arma de fogo que vá resolver o problema da criminalidade no país. Diversos outros fatores contribuem para isso, mas respeito sua opinião e compreendo a angústia do cidadão que não vê assegurado seu direito à vida e à segurança, que deveriam ser proporcionados pelo Estado.
      No mais, agradeço a participação!Sigamos refletindo sobre o tema.

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