Don Juan e o estelionato sexual – Mentir para fazer sexo é crime? – Justiça & Polícia

Don Juan e o estelionato sexual – Mentir para fazer sexo é crime?

Por Paulo Reyner Camargo Mousinho

O Sedutor de Servilha (El Burlador de Servilla), um drama espanhol datado de 1630, de Tarso de Molina, conta a história de um dos mais famosos personagens, diversas vezes retratado em filmes, peças teatrais, novelas entre outras obras. O enredo narra a vida do famigerado Don Juan, homem libertino que ficou conhecido por sua forma de lidar com as mulheres, sobretudo pela facilidade em conquistá-las, o qual gaba-se de ter tido mais de 1500 amantes.

Pois bem, em que pese a identidade do personagem ser desconhecia, havendo certa celeuma se se trata de apenas uma lenda, o fato é que em dias atuais Don Juan estaria com sua liberdade ameaçada.

Ocorre que tem sido veiculado pela mídia o indiciamento e a prisão de homens em razão da prática que ficou conhecida como estelionato sexual a qual, juridicamente, pode ter enquadramento típico no art. 215 do Código Penal Brasileiro – CPB, sob a rubrica Violação Sexual Mediante Fraude. Confira a redação do citado artigo:

Art. 215.  Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima:            (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.             (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Parágrafo único.  Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa.

Como se pode notar, o crime em comento pune a conduta de ter conjunção carnal ou outro ato libidinoso mediante fraude ou, ainda, outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação da vítima.

Contudo, indaga-se, até que ponto poderia ir a interpretação do citado tipo penal? Será que uma simples mentira contada à suposta vítima com o fim de conseguir fazê-la aceitar o ato sexual poderia configurar o crime?

Exemplificando: caso um homem diga a uma mulher que é solteiro e por tal motivo ela aceite praticar sexo com ele, estaria o crime configurado? Mais ainda, se porventura nosso mesmo personagem disser à donzela que é possuidor de vasto patrimônio, tais como mansões, carros de luxo, iates etc., sendo tudo um engodo, convencendo a vítima, por tal motivo, a manter conjunção carnal com ele, haveria crime?

Bem, se até o momento parece absurdo para o leitor esta hipótese, veja abaixo o vídeo com reportagem[i] bastante ilustrativa de um caso real nessas circunstâncias:


Independente da análise do conteúdo do inquérito ou processo que analisou tal caso, considerando que não temos acesso aos autos e não há elementos suficientes para avaliar a correta adequação típica, impendem algumas considerações a respeito de situação hipotética semelhante.

Sobre o tipo penal violação sexual mediante fraude, importante dizer que a vítima pode ser qualquer pessoa, tanto homem quanto mulher, bem como que a relação sexual deve ser consentida, não havendo grave ameaça ou violência, caso em que estaria configurado o crime de estupro. Assim, a vítima é induzida a erro por alguma circunstância dolosamente arquitetada pelo sujeito ativo a manter conjunção carnal ou outro ato libidinoso.

Os exemplos mais comuns citados pela doutrina são os seguintes: a) irmão gêmeo que se faz passar pelo outro, enganando a namorada ou esposa daquele para que a relação seja sexual seja consentida; b) simulação de culto ou trabalho religioso como engodo para prática de ato sexual com fiel e, c) simulação de tratamento médico para cura de enfermidade, seria o caso, por exemplo, de um médico que acaricia os seios e as genitálias de suas pacientes desnecessariamente para satisfazer sua libido.

Delito de tendência ou atitude pessoal

Com se vê, para a configuração do delito se faz necessário o elemento subjetivo de tendência, o que vem sendo chamado de delito de tendência ou atitude pessoal, no qual a intenção do agente quando pratica o ato é relevantíssima, pois, caso pratique a conduta despido da intenção de satisfazer sua lascívia, não há crime!

Nesses termos nos ensina Guilherme Nucci [iii], in verbis:

É a finalidade de satisfazer a lascívia, por meio da conjunção carnal ou outro ato libidinoso, implícita no tipo. Ainda que haja intuito vingativo ou outro qualquer na concretização do ato libidinoso, não deixa de envolver uma satisfação mórbida de prazer sexual (…). É o que se pode chamar de elemento subjetivo de tendência (a ação segue acompanhada de determinado ânimo, que é indispensável à sua realização), tal como se dá nos delitos sexuais.

Dessa maneira, o toque do ginecologista na realização do diagnóstico, por exemplo, pode configurar um mero agir profissional ou algum crime de natureza sexual.

Assim, nessa linha de raciocínio, no exemplo das curas espirituais por meio de atos sexuais, se tanto o suposto sujeito ativo (pastor, padre, pai de santo ou qualquer ministro religioso) quanto a vítima acreditarem que realmente haveria afastamento de algum mal espiritual, não haveria crime.

Destarte, a configuração do crime depende do elemento subjetivo do agente, ou seja, sua intenção. Ressalte-se, entretanto, que a intenção do agente não deve ser verificada de acordo somente com sua versão dos fatos, mas sim pelas circunstâncias do caso concreto, inclusive analisando o grau de maturidade da vítima, inserção social, escolaridade, conhecimento de vida, entre outros aspectos.

Ainda sobre o crime em análise, importante dizer que a segunda parte do art. 215 do CPB diz que o crime pode se consumar, além da fraude, por outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima.

Assim, outra dúvida que pode surgir é a incidência nesse tipo penal quando a vítima se encontra levemente embriagada, pois sua livre manifestação de vontade pode estar diminuída. Argumenta NUCCI (2011, p. 842) que “Ora, se alguns copos de cerveja impendem a direção, por que permitiria o consentimento para o relacionamento sexual?” Por isso, o mesmo autor orienta cautela a aplicação do tipo  nesses casos. Sem olvidar, entretanto, a possibilidade de tipificação do crime de estupro de vulnerável se a vítima estiver em completo estado de embriaguez (CPB, art. 217-A, § 1º), por haver total impossibilidade de oferecer resistência.

Da idoneidade da fraude

Após esses breves comentários sobre o tipo penal, voltemos ao caso do conquistador mentiroso. Indaga-se: seria uma mera mentira sobre o estado civil ou propriedade de bens engodo suficiente para caracterização do crime?

Os Don Juans estariam realmente sujeitos à incidência delitiva prevista no art. 215 do CPB?

Lembrando que o delito pode ser praticado por qualquer pessoa, caso uma mulher diga ao seu pretenso parceiro sexual que é virgem, mas no momento do ato sexual ele constate que ela não o é, haveria crime? Ainda, se uma mulher mentir sobre sua idade com o intuito de atrair o homem para uma relação sexual, incorria ela na figura típica descrita no art. 215 do CPB?

Obviamente entendemos que a resposta só pode ser negativa.

Bem, melhor ir com calma nessa hora, considerando que todos os tipos penais devem ser interpretados à luz da Constituição Federal, tendo como vetor interpretativo o respeito a vários princípios, impondo que não haja excesso punitivo estatal, nem tampouco interpretações abusivas e desarrazoadas.

Vale a pena lembrar nesse momento, a incidência dos princípios da subsidiariedade, fragmentariedade, proporcionalidade e, finalmente, o princípio da adequação social.

Nessa linha de ideais, não pode o intérprete usar tipos penais para punir excessivamente os cidadãos. Em que pese condutas socialmente aceitas não ter o condão de revogar tipos penais (princípio da legalidade), a dinâmica da vida em sociedade impede a criminalização de condutas menores, assim como a interpretação excessiva dos tipos penais.

A mera mentira social para produzir impacto no imaginário da suposta vítima não pode ser tipificada. A fraude é uma mentira qualificada e dela se difere. Qualificada porque requer um plus valorativo da conduta do sujeito ativo.

A vítima do crime de violação sexual mediante fraude deve ser iludida mediante fraude idônea para alterar seu estado anímico de livremente consentir o ato sexual. Nos exemplos em que o sujeito ativo simplesmente mente sobre seu estado civil ou sua condição social patrimonial, não há fraude no consentimento, talvez haja interesse da própria vítima em haver um futuro vínculo afetivo mais duradouro, ou mesmo mero interesse patrimonial, o que se mostra ainda socialmente mais reprovável. A frustração dessa expectativa não pode ser criminalizada.

E se o homem ou mulher casada acusados do crime divorciarem-se e casar com a vítima, subsistira o crime? Caso, ainda, a vítima se apaixonasse pelo suposto(a)  autor(a) do crime sabendo que ele não tem vasto patrimônio, ainda sim haveria o delito? Percebem, o Direito Penal não pode se imiscuir nesses aspectos da vida, pois é a ultima ratio, devendo ser aplicado somente em situações graves, sob pena de sua banalização.

A diligência normal requer cautela ao se relacionar sexualmente com alguém. Se a suposta vítima não adotou tais cautelas não se pode impor punição penal ao Don Juan mentiroso, pois seria estender ao Direito Penal uma função extremamente exagerada e em desacordo com atual modelo social, no qual há ampla liberdade sexual entre homens e mulheres, assim como acesso a informações suficientes para esclarecimento e composição da maturidade sexual.

Talvez essa interpretação fosse possível em séculos passados, quando a castidade feminina era sagrada e determinado indivíduo a iludisse alegando que se casaria depois de deflorá-la.

Em tempos atuais, todavia, soa absurda e ilógica a punição penal sobre questões dessa natureza.

Quem sabe na esfera da responsabilidade civil o pedido de reparação seja possível, mas mesmo assim haveria necessidade de provar o dano, o nexo causal e a conduta. Desse modo, o dano que em tese poderia ser alegado seria o moral, tendo como pressuposto a violação de algum direito da personalidade.

De mais a mais, considerando que o Direito Penal deve ser a ultima ratio, entendemos que uma mera mentira, afastada do contexto idôneo requerido pela expressão “mediante fraude” do tipo penal do art. 215, não é capaz de ser caracterizada como suficiente para a configuração deste crime.

Ademais, não se olvide também a possibilidade de alegação de erro de proibição direito, no qual o sujeito ativo desconhece o conteúdo do comando normativo do tipo penal ou não entende seu âmbito de incidência, vez que hodiernamente é inverossímil acreditar na criminalização da mentira pura e simples.

Assim, entendemos que Don Juans, sedutoras e sedutores não precisam ficar tão preocupados.

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paulo-reynerSobre o autor: Paulo Reyner é atualmente Delegado de Polícia Civil e ex-Policial Militar. Graduado em Direito pela Universidade do Distrito Federal – UDF, Especialista em Ciências Criminais e Especialista em Políticas e Gestão em Segurança Pública. Autor do livro Peças e Prática da Atividade Policial.


[i] TVIG. Homem é preso por mentir para amante no Paraná. Disponível em: http://tvig.ig.com.br/noticias/brasil/homem-e-preso-por-mentir-para-amante-no-parana-523323e932154c4802000064.html. Acesso em 17.01.2017.
[iii] NUCCI, Guilherme de Souza, Manual de Direito Penal: parte geral: parte especial. 7 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 840.

5 comentários em “Don Juan e o estelionato sexual – Mentir para fazer sexo é crime?

  • Concordo com a posição quanto aos limites da norma, aplicar as simples mentiras que não mudariam a vontade dos envolvidos no ato, entendo que não seria capaz de configurar o crime. Os bons exemplos citados como dos irmãos gemes, fingir ser marido, até mesmo usar a religião ou tratamento médico, sim entendo capazes de configurar o crime.
    Não poderia deixar de notar a comparação, ao meu ver descabida entre a embriaguez na condução de veículos e a leve embriaguez para consentimento sexual, bens jurídicos protegidos diversos, confesso que provocou risadas.
    Por fim, elogiar a ótima contribuição para discussão do tema, principalmente no sentido de por limites a aplicação e evitar a intromissão indevida do Direito Penal na vida privada e sexual.

  • Olá, caro colega. Li o seu texto e devo lhe parabenizar, pois sua escrita é ótima.
    Agora quanto ao conteúdo tenho algumas ressalvas, devida vênia.
    Sim, pois, o Direito Criminal é de ultima ratio, mas tendo o Código Penal legislado expressamente sob a conduta, não é de se esperar que se aplique o que diz a legislação?
    O senhor afirma que a vítima deve ser “iludida mediante FRAUDE IDÔNEA para alterar o seu estado anímico”. Com isso o senhor não acredita que o fato de um homem ou mulher afirmar VEEMENTE com todas as letras que não possui um relacionamento sério e que se somente após essa afirmação a vítima tenha consentido o ato sexual, seja uma especie de fraude. Ora, pois,o que é fraude então? O dicionário brasileiro aduz ser “qualquer ato ardiloso, enganoso, de má-fé, com o intuito de lesar ou ludibriar outrem”.
    Por mais incrivel que pareça existem pessoas que não gostam de se relacionar com alguém comprometido e procuram deixar isso claro, antes de tudo, porém, infelizmente, existem outras pessoas capazes de mentir sobre qualquer determinado assunto a fim de induzir outrem a erro.
    O artigo 215 é claro e objetivo: ter conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso com alguém mediante fraude. Ou seja, se a vítima desde o inicio deixou claro que não gostaria de se envolver com alguém comprometido e esse alguém afirmou ser solteiro somente para transar com a vítima, há a clara violação sexual mediante fraude, pois a vítima disse que não se envolveria caso o agente fosse comprometido, certo?
    Nesse caso, mesmo havendo o consentimento para o ato sexual, este estaria eivado de vícios.
    Ademais, quando o senhor afirma na colocação de que deveria haver uma cautela maior, e que se a vítima não adotou não pode responsabilizar penalmente o agente fraudulento, o senhor não acha que estaria culpabilizando a vítima por um ato cometido por outra pessoa? Ninguém é responsável pelas ações de outra pessoa, se o agente mentiu, ele mesmo incorreu em fraude e não cabe o ônus à vítima de ficar procurando evidências.
    Enfim, há outras coisas que eu gostaria de debater com o senhor, tal como a castidade feminina ser sagrada anteriormente e somente assim o artigo teria eficácia. Ora não fez muito sentido, pois se fosse somente por isso a tutela da liberdade sexual, o 213 deveria de ser crime também. Mas já me alonguei por demais.
    Abraços.

    • Adorei o seu comentário! Pois hoje eu estou passando justamente por essa situação, conhecir alguém pelas redes sociais, e ficamos 1 mês conversando só por mensagens, vídeos chamadas e telefonemas, e esse homem se mostrou um verdadeiro Dom Juan, bonito, solteiro, profissional exemplar e uma pessoa do bem, muito atraente, articulado mas falas e sempre querendo me mostrar que ele era o homem ideal. Mas eu não confiei e busquei respostas e consegui graças a Deus descobrir a tempo que era um homem casado e aparentemente muito bem casado. Ainda houve o meu consentimento em uma única vez em ter uma maior intimidade, mas eu aceitei pelo fato de achar que tudo que ele me falou fosse verdade, mas eu não me sentia tão segura pra continuar aquela relação e fui investigar e achei a verdade. Eu estou me sentindo violada, enganada e acima de tudo eu me sinto inútil em não saber o que fazer.

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